quarta-feira, 19 de outubro de 2016
A melancolia de terminar um livro.
Acontece-me com leituras em que me envolvo mais a fundo, leituras que sinto, pelo menos em parte, como pertença minha, escritas por mim, retratos de mim ou seja lá o que for.
São como seres vivos, esses livros; nascem, vivem e terminam. E quanto mais intensamente vivem enquanto são lidos, mais nos magoamos com o seu fim; ao ponto de muitas vezes - acontece cada vez mais comigo - me apetecer voltar atrás a ler tudo, ou partes, aquela descrição, aquele diálogo, os cantos dobrados - sim, tenho essa mania de dobrar cantos; sobretudo não pôr o livro de parte, não o arrumar, ficar ali com a capa à vista para marcar lugar no meu dia. Não o deixar morrer.
Um livro destes é uma obra de arte também como objecto, podia estar exposto, encaixilhado, ou pelo menos com a lombada a ver-se na prateleira mais à mão, a lembrar que mesmo 'terminado' ainda existe, está ali sempre que a ele se queira regressar, às paisagens e lugares que ele descreve, às pessoas que estão ali dentro impressas preto sobre branco.
Foi assim com a Guitarra Azul de John Banville. Durante semanas foi meu companheiro, entrei dentro das vidas de outras pessoas - não interessa se inventadas, são vidas - que me fizeram, em silêncio, rir ou sofrer, gostar ou odiar, que me deram a sua intimidade. Deixar de as ter a meu lado, ou dentro de mim, ou nas páginas impressas, é uma falta, é um desaparecer de entes queridos, é uma nostalgia de vidas que deixam de existir. Bolas. A boa literatura deixa marcas fortes.
Oliver, Polly, Gloria, Marcus, adeus. Obrigado por me teres dado a conhecer estes eus de ti próprio, Banville. Mais uma vez.
E pela Janela Aberta de Matisse, com dirigível e tudo.
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3 comentários:
Compreendo. Também me acontece e acontecia ainda mais quando lia clássicoa de fio a pavio.
Um livro é apaixonante, lido aqui na minha sala, sem ruídos, sem ninguém que interrompa, até altas horas da manhã.
Leio no Kindle agora, mas até passo as páginas mais rápidamente...
Boas leituras....
Sem ter o engenho de me expressar desta forma tão eloquente, revejo-me neste seu belo texto (só não dobro os cantos). Quantas vezes volto atrás ou volto a livros lidos recentemente. São partes de nós ou escritos para nós, como tão bem descreve.
O meu problema maior, no presente, é a falta de tempo para dedicar aos livros todo o tempo que merecem, sem leituras apressadas que, infelizmente, são quase a rotina. Contudo, encarando com alguma angústia e incerteza uma etapa próxima da minha vida, aquela em que deixamos de ser úteis profissionalmente por atingirmos o "limite de idade", passar a ter todo o tempo que quiser para degustar a leitura é, quero crer, um dos poucos aspectos positivos que antevejo nessa nova etapa que se vai aproximando.
Virgínia, desculpe o atraso na resposta, mas tenho andado 'mal' das minhas 'maleitas'.
O Kindle ainda não, e provavelmente nunca, há coisas novas a que não me rendo. O livro objecto é uma coisa com vida, muitas vezes uma coisa linda.
Agora leio Murakami e estou bem decepcionado. Já leu ?
Fanático_Um
Desculpe também o atraso, mais uma vez é um gosto saber que gosta de 'me' ler.
Não receie esse 'limite de idade'! Diz-se muita asneira sobre isso, que traz depressões e solidão... Ora ora. A mim trouxe-me o tempo gloriosamente livre para fazer o que me apetece. Devia ter vindo ainda mais cedo. Não me falta(sou um felizardo) nada excepto melhor saúde, mas nem disso me devo queixar quando vejo tantos que sofrem mais à minha volta. O único 'mal' do "tempo livre" é estarmos mais atentos aos outros, sentirmos mais forte o dever de ajudar por estarmos disponíveis. E não falta quem precise.
Deixe para tras essa angústia ! Vai poder planear e viajar mais, cuidar melhor de si, dar atenção à saúde, praticar actividades ao ar livre - passear a pé!-, ir ao cinema nas horas de vazio, fazer pequenas coisas que se calhar não faz agora como cozinhar de vez em quando - é um prazer! - procurar aguarelas ou fotos (suas!) para emoldurar e decorar as paredes, ouvir música horas a fio em CD ou DVD - tem coisas em casa que nunca teve tempo para ouvir ? eu tenho ! - , até ir às compras pode ser engraçado, às vezes fazem-se descobertas; e, claro, LER muito mais. E voltar a trás, e tirar apontamentos. Há um mundo de coisas que nos estavam vedados pelo trabalho. Vai ver que, se quiser, o "limite de idade" pode ser uma libertação.
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