segunda-feira, 3 de outubro de 2016
A Europa nasceu na Itália renascentista, e nasceu contra Turcos, Muçulmanos e Mongóis.
No princípio, era a Itália...
Europa e capitalismo estão fortemente interligados pela sua génese: ambos nascem na transição da Idade Média para o Renascimento, ambos nascem do vigor comercial dos portos italianos e do mar do Norte, ambos de uma vontade de liberdade cosmopolita contra o domínio total(itário) da Igreja e contra as intenções ameaçadoras de turcos e muçulmanos.
Já durante as Cruzadas, quando era o proselitismo religioso que comandava, o contacto com o Médio Oriente tinha ao mesmo tempo unido os povos europeus e alargado o seu conhecimento do mundo. Pelo contacto com persas e mongóis, soube-se da Ásia, abriram-se rotas; dos magrebinos vinha o conhecimento de África; a busca do mítico reino do Prestes João esteve na origem da epopeia das Descobertas. Esta duplicidade entre a 'unidade cristã' e a 'abertura ao mundo' foi o caldo que, durante o Renascimento, iria gerar a ideia política e humanista da Europa, como entidade civilizacional possível; a par - não podemos esquecer - da acumulação de capitais pelo mercantilismo alargado que daria origem à banca florentina.
As principais cidades e rotas mercantis nos séc XIII-XIV, transição para o Renascimento.
Recentemente, Yves Hersant escreveu no Le Point:
"Do século XIV ao XVI, de um extremo ao outro da Europa, intelectuais e artistas, mecenas e príncipes, adquiriram a convicção de viver uma era nova: um 'despertar', uma 'regeneração', uma 'restauração', tantos termos, ou metáforas, pelas quais as elites europeias - as italianas à frente - formaram um grande projecto: reactivar os tempos antigos para abrir tempos 'modernos', olhar para trás para dar um salto em frente." (...) "Partindo das cidades italianas, essa revolução pouco a pouco conquistou a Europa, afectando as artes e as letras, as ciências e os costumes".
"Foi no curso da Renascença, num contexto muito conflituoso, que emergiu a ideia moderna de Europa, com consciência de uma pertença cultural comum. Primeiro marco: a queda de Constantinopla em 1453, desastre fenomenal, provoca um extraordinário sobressalto de consciências diante da mensagem turca. Testemunha disso é o humanista Enea Silvio Piccolomini, futuro Pio II, espantosa figura do 'quattrocento': foi um dos primeiros a introduzir a palavra Europeu, a pensar a Europa como unidade mais cultural que religiosa, a entrever a "república" da inteligência (expressão que Voltaire admirava, três séculos mais tarde). Segundo marco : George Podiébrad, rei da Boémia, é o político "imaginativo" que redige em 1463 o primeiro projecto de unidade europeia. Não só para fazer face ao poder otomano, mas para devolver à Europa uma consciência politica unitária - a concretizar pela limitação de soberanias (!), um orçamento federal, um exército comum, um parlamento europeu, um tribunal, uma capital rotativa... Terceiro marco : com Machiavelli confirma-se e apura-se a saída da Europa da cristandade medieval (a 'christianitas'). O escritor florentino é o primeiro dotar a Europa de carácter puramente laico, político, e independente da religião. A sua Europa é a da concorrência de partidos e de energias individuais." (...)
"Juntemos ainda as Grandes Descobertas que também ajudaram os europeus a definir-se mais nitidamente, por oposição aos outros; e concluimos que a Europa é um dos legados, e não o menor, que nos deixou a Renascença."
Colombo desembarca em Hispaniola (gravura do séc. XVI). Primeiro a América (1492), depois as Índias (1498), o Pacífico (1520)...
Marc Fumaroli, ensaísta da Academia Francesa, também no Le Point:
"A Itália foi o primeiro e o mais efervescente laboratório desta descolagem da Europa a que se chama Renascença". (...) "Os filhos dos negociantes italianos, os financeiros da Europa, são os grandes inovadores da época."
(...) "A sua riqueza assentava na banca, e no comércio e fabrico de lãs e sedas: a partir de 1422, a produção de brocados que misturam fio de ouro e de seda permite aos tecidos florentinos suplantar as sedas orientais e invadir os mercados europeus.
Vestidos de seda e ouro... "heaven's embroidered clothes, enwrought with golden and silver light", escreveria Yeats.
Um brocado florentino. Vermelho era a cor mais nobre.
(...) "Em 1439-1443, Florença foi o palco de um Concílio que reuniu a elite religiosa e a cultural bizantina, a fina flor dos teólogos e humanistas italianos. É então que a Renascimento latino se torna também Renascimento grego. Os banqueiros Medici fazem de Florença a capital do neoplatonismo ocidental e uma cidade-academia, onde os artistas trabalham no meio de colecções de obras antigas greco-romanas."
O conglomerado da banca florentina era o maior da Europa, com filiais em Génova, Nápoles, Veneza, Avignon, Bruges, Londres. Fundado em 1397 por Giovanni de' Medici, a sua fortuna bancária cresceu e atingiu o máximo sob a gestão do filho Cosimo, o famoso patrono das artes e governador de Florença durante o apogeu do Renascimento. Começaria a declinar, em sucessivas falências por falta de fundos de cobertura, nos tempos ainda gloriosos de Lorenzo, neto de Cosimo.
O sucesso da banca dos Medici era fundado sobre uma inovação: em vez de juros, condenados pela Igreja, actuava em termos de transações bancárias, como transferências : por exemplo, comprar lã inglesa nos Cotswolds e vendê-la em Florença, recebendo a paga em Londres, em libras. Para isso os Medici abriram filiais bancárias nas várias cidades onde negociavam. Manobrar moedas, pesos e medidas diferentes exigia um intenso e complexo trabalho financeiro que só muita disciplina e bons conhecimentos de aritmética e geometria - sobretudo as proporções e a fundamental "regra de três" - permitiam dominar.
Toda essa riqueza era reciclada e investida em capital humano, transformada em património de arquitectura urbana, numa arte que não tem igual em nenhuma outra cidade. É um legado assombroso.
Villa encomendada por Lorenzo de' Medici, de 1480. Lorenzo foi um dos mais entusiásticos patronos da Renascença.
Fachada de Santa Maria Novella, Florença, séc XIV.
Capela Pazzi, Florença, de Brunelleschi.
Piero di Cosimo, Retrato de Senhora vestida de Maria Madalena, 1501.
Tapeçaria florentina encomendada pelos Medici.
Quatro filósofos apadrinhados pelos Medici.
Ghirlandaio (Florença), ~1488
Sala de leitura da Biblioteca Laurenziana de Florença, onde os Medici acumularam uma colecção de muitos milhares de livros e de manuscritos preciosos, postos à disposição de estudiosos de toda a Europa.
Entretanto, o humanismo e as artes iam alastrando ao Norte da Europa, não só pelo intenso tráfego de negócios mas sobretudo pelos mestres viajantes como Leonardo, Francis Bacon, Paracelso, Montaigne ou Erasmo, o grande Doutor Universal que esteve três anos em Itália e correu todos os centros de pensamento europeus. E, bem no centro europeu, a descoberta da imprensa marca a última etapa da revolução do Humanismo letrado.
Viagem a Itália de Michel de Montaigne, uma das maiores figuras do humanismo renascentista.
Humanismo, liberalismo, mecenato, tudo nasceu em Itália. Stendhal atribui a Itália a invenção do homem universal e laico, o indivíduo moderno. Esse 'eu' generoso de Colombo, de Masaccio, de Petrarca e de Miguel-Ângelo; de Maquiavel, de Galilei, de Monteverdi, de Brunelleschi e de Bramante; também de Van Eyck, de Erasmo, de Montaigne e de Descartes, o 'eu' depois rejuvenescido - não traído - pelo 'eu' do romantismo e do modernismo.
Roger Pol-Droit, o filósofo francês, confirma: falando do liberalismo,
"As suas origens filosóficas são rigorosamente as mesmas que as da modernidade política, que começa, no essencial, com Maquiavel. Nesse sentido, não se trata de uma doutrina fixa, mas de um conjunto de linhas de força: direitos do indivíduo em vez de submissão à autoridade real ou religiosa, liberdade de consciência em vez de submissão à Igreja, separação do poder espiritual e do poder temporal, contrato social em vez de direito divino, direito à rebelião em vez de dever de obediência. E é preciso juntar esta afirmação central: para os liberais, as normas e os valores das sociedades humanas são construídos, artificiais, e não naturais ou divinos".
(...) "A realização dessa mutação filosófica estendeu-se da Renascença à Revolução Francesa."
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Falta uma referência a Leste: também contra a ameaça turca e mongol, também iluminado pelo fulgor de Itália, o império Czarista sob Ivan III fez uma revolução nas artes e costumes a partir de Moscovo.
O Renascimento acontecia na Europa, não esqueçamos, sob a ameaça permanente das hordas do Império Otomano, derrotadas em Viena e em Malta, mas voltando à carga ainda do séc XVII - o cerco de Viena foi em 1689. Os turcos tinham nessa altura um exército superior em número, organização e armamento ao de qualquer país europeu. E não lhes faltou com quem travar batalhas - portugueses, espanhóis, venezianos, húngaros, persas, polacos, russos... enfim, isso acabou por trazer algo de bom - foi para escapar ao controle turco das rotas do Mediterrâneo para oriente que se procurou um caminho alternativo para as Índias!
A ameaça mongol, por outro lado, arrasara as culturas orientais mais próximas da Europa e atacava a Rússia, conquistando Kiev. Era temida mesmo em Itália...
Se calhar, nunca na História se assistiu a um tão intenso caldo cultural, a uma tão vasta revolução nas ideias e costumes, como nesses séculos do Quattrocento e Cinquecento, XV e XVI, em que a Europa adquiria forma, conteúdo e ambição.
Convém pois lembrar quem foram os impulsionadores, aliados e opositores nesse percurso.
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