Kagsagsuk
Era uma vez um rapazito órfão que vivia na companhia de homens maldosos. Chamava-se Kagsagsuk e só contava com uma mãe adoptiva, uma velhinha miserável. Viviam numa arrecadação ao lado do corredor de entrada da casa, e não eram autorizados a entrar na sala principal. Kagsagsuk nem sequer entrava no barracão, preferindo ficar no corredor e procurar calor entre os cães de trenó. Às vezes, de manhã, quando os homens saíam a levantar os cães à força de chicote, atingiam também o pobre rapaz que dormia no meio deles. Punha-se a ganir Na-ah, Na-ah, e os outros troçavam dele por se portar como um cão. Quando os homens lá dentro se banqueteavam com várias carnes e pele de morsa, o pequeno Kagsagsuk espreitava sobre a entrada, e às vezes os homens erguiam-no com maldade, segurando-o com os dedos pelas narinas. Assim estas eram cada vez maiores, embora o rapaz nada crescesse. Davam-lhe bocados de carne congelada, sem uma faca para a cortar, e mandavam-no usar os dentes como os cães. Às vezes puxavam e tiravam-lhe um ou dois dentes, e protestavam que ele andava a comer demais.
A pobre mãe adoptiva conseguiu arranjar-lhe umas botas e uma pequena azagaia de caçar pássaros para ele sair a brincar com outras crianças; mas como era pequeno e fraco atiravam-no para a neve e faziam-no rodopiar até ficar com a roupa toda branca de gelo; as raparigas ainda eram piores, cobriam-no de porcaria. Assim o rapazito passava a vida atormentado e troçado por todos, e não crescia a não ser nas narinas.
Aos poucos foi-se aventurando nas montanhas, sem ajuda, procurando recantos solitários, onde cismava como havia de se tornar mais forte. A mãe tinha-lhe transmitido algumas ideias. Um dia, entre duas montanhas, levantou-se e berrou: “ Deus da força, vem ! Deus da força, vem ter comigo”. Apareceu um animal enorme, um amarok, que é como um grande lobo. Kagsagsuk estava cheio de medo, ia desatar a correr; mas o bicho ultrapassou-o , enrolou-o com a cauda e atirou-o ao chão. Incapaz de se mexer, ouviu um som como chocalhar e viu vários ossinhos de foca , como se fossem brinquedos, caindo do seu próprio corpo. Disse o amarok: “ São estes ossos que te impedem de crescer”. E repetiu – enrolou o rapaz com a cauda, apertou, e mais ossos cairam – mas já eram poucos. À terceira vez, os últimos ossitos cairam na neve. À quarta vez, o rapaz desequilibrou-se um pouco, mas à quinta nem isso – saltou sobre a neve. Disse o amarok: “ Se é teu desejo ficar mais forte e vigoroso, podes vir ter comigo todos os dias”.
No regresso a casa, Kagsagsuk sentia-se leve, e até deu uma corridinha, aos pontapés nas pedras do caminho. Ao chegar a casa, as raparigas que estavam de guarda aos bebés viram-no e riram-se: “Kagsagsuk vem aí! Vamos cobri-lo de lama!”. Os rapazes bateram-lhe e atormentaram-no como de costume. Não se opôs e, como era hábito, foi dormir com os cães. Desde então, foi todos os dias ter com o amarok e seguiu sempre o mesmo procedimento. Sentia-se cada vez mais forte.
Um dia, o amarok já nem foi capaz de o derrubar. E disse: “ Pronto, chega. Os seres humanos já não te podem vencer. Mas por enquanto mantém os teus hábitos de vida. Quando chegar o inverno e o mar gelar, é altura de te mostrares; surgirão três grandes ursos, e serás capaz de os matar com as tuas mãos.” Kagsagsuk asssim fez. Correu para casa e manteve os seus hábitos, sendo atormentado como sempre.
Chegou o Outono, e um dia os pescadores dos kayaks chegaram com um grande tronco de madeira* apanhado à deriva no mar. Deixaram-no na praia amarrado a grandes pedras, porque era pesado para levar para casa duma só vez. Ao cair da noite, Kagsagsuk disse à velha bisavó: “ Dá-me as botas, mãe, também quero ir lá abaixo ver a madeira”. Quando já todos dormiam, esgueirou-se para a praia e, soltando o tronco, pô-lo às costas e levou-o para as trazeiras da casa, onde o enterrou. De manhã, o primeiro homem a chegar à praia gritou: “A madeira desapareceu!”. Quando todos viram as cordas cortadas, ficaram espantados, pois não havia ventos nem marés que pudessem ter arrancado o tronco. Mas uma velha, detrás da casa, chamou: “Venham ver! Está aqui!”. Todos correram para lá gritando, “Quem fez isto? Há entre nós algum homem com força sobrehumana!”. Os jovens começaram a dar-se ares, como se cada um pudesse ser o forte desconhecido. Impostores!
Começou o Inverno, e os homens da casa grande vizinha do barracão de Kagsagsuk trataram-no ainda pior que antes; mas ele continuou submisso, para não levantar suspeitas. Até que o mar congelou, impedindo a caça às focas. Quando os dias começaram a durar mais, os homens chegaram um dia a correr com a notícia de três ursos que subiam um iceberg. Ninguém se atreveu a ir no seu encalço. Era a hora de Kagsagsuk agir. “Mãe”, disse, “ dá-me as botas, também quero ir ver esses ursos”. Ela não gostou, mas lá lhe atirou as botas, troçando: “Então vai, e arranja-me em troca uma pele para o sofá e outra para a manta!”. Calçou as botas, apertou os farrapos de roupa que vestia, e saiu à procura dos ursos. Os homens que estavam fora viram-no e comentaram, “ Olha se não é Kagsagsuk! Onde irá ele? Dêem-lhe uns pontapés!”, e as raparigas, “Deve ter perdido uns parafusos!”, mas Kagsagsuk passou a correr por todos eles como se fossem um cardume de peixinhos. Corria tanto que os calcanhares quase lhe subiam até ao pescoço, e a neve saltava e espumava , faíscando nas cores do arco íris. Subiu o iceberg à força de mãos, e logo o maior urso levantou a garra. Kagsagsuk rodopiou e agarrou-o pelas patas da frente, lançando-o contra o iceberg de tal modo que as coxas se separaram do corpo, depois atirou-o à assistência gritando, “ O meu primeiro troféu; agora esquartejem-no e dividam entre vós”. Os outros pensaram, “ O próximo urso mata-o”. Mas o processo repetiu-se, e o urso foi atirado contra o gelo. Mas com o terceiro, apenas o agarrou pelas patas e pô-lo às voltas a girar por cima da cabeça, lançando-o contra um deles, “Este tipo portou-se vergonhosamente comigo”, e depois, atingindo outro, “Esse ainda me tratou pior!”, até que todos se tinham posto em fuga para casa entre grande consternação.
Chegou o Outono, e um dia os pescadores dos kayaks chegaram com um grande tronco de madeira* apanhado à deriva no mar. Deixaram-no na praia amarrado a grandes pedras, porque era pesado para levar para casa duma só vez. Ao cair da noite, Kagsagsuk disse à velha bisavó: “ Dá-me as botas, mãe, também quero ir lá abaixo ver a madeira”. Quando já todos dormiam, esgueirou-se para a praia e, soltando o tronco, pô-lo às costas e levou-o para as trazeiras da casa, onde o enterrou. De manhã, o primeiro homem a chegar à praia gritou: “A madeira desapareceu!”. Quando todos viram as cordas cortadas, ficaram espantados, pois não havia ventos nem marés que pudessem ter arrancado o tronco. Mas uma velha, detrás da casa, chamou: “Venham ver! Está aqui!”. Todos correram para lá gritando, “Quem fez isto? Há entre nós algum homem com força sobrehumana!”. Os jovens começaram a dar-se ares, como se cada um pudesse ser o forte desconhecido. Impostores!
Começou o Inverno, e os homens da casa grande vizinha do barracão de Kagsagsuk trataram-no ainda pior que antes; mas ele continuou submisso, para não levantar suspeitas. Até que o mar congelou, impedindo a caça às focas. Quando os dias começaram a durar mais, os homens chegaram um dia a correr com a notícia de três ursos que subiam um iceberg. Ninguém se atreveu a ir no seu encalço. Era a hora de Kagsagsuk agir. “Mãe”, disse, “ dá-me as botas, também quero ir ver esses ursos”. Ela não gostou, mas lá lhe atirou as botas, troçando: “Então vai, e arranja-me em troca uma pele para o sofá e outra para a manta!”. Calçou as botas, apertou os farrapos de roupa que vestia, e saiu à procura dos ursos. Os homens que estavam fora viram-no e comentaram, “ Olha se não é Kagsagsuk! Onde irá ele? Dêem-lhe uns pontapés!”, e as raparigas, “Deve ter perdido uns parafusos!”, mas Kagsagsuk passou a correr por todos eles como se fossem um cardume de peixinhos. Corria tanto que os calcanhares quase lhe subiam até ao pescoço, e a neve saltava e espumava , faíscando nas cores do arco íris. Subiu o iceberg à força de mãos, e logo o maior urso levantou a garra. Kagsagsuk rodopiou e agarrou-o pelas patas da frente, lançando-o contra o iceberg de tal modo que as coxas se separaram do corpo, depois atirou-o à assistência gritando, “ O meu primeiro troféu; agora esquartejem-no e dividam entre vós”. Os outros pensaram, “ O próximo urso mata-o”. Mas o processo repetiu-se, e o urso foi atirado contra o gelo. Mas com o terceiro, apenas o agarrou pelas patas e pô-lo às voltas a girar por cima da cabeça, lançando-o contra um deles, “Este tipo portou-se vergonhosamente comigo”, e depois, atingindo outro, “Esse ainda me tratou pior!”, até que todos se tinham posto em fuga para casa entre grande consternação.
Ao chegar a casa, foi direito à bisavó com a pele de dois ursos, “Uma para o sofá, outra para a manta!”, e deu ordem para que a carne do terceiro urso fosse arranjada e cozinhada. Pediram então a Kagsagsuk que entrasse na sala grande da casa; em resposta, espreitou pela soleira da porta e disse, “Não consigo entrar, a não ser que alguém me levante pelas narinas.” Como mais ninguém se atreveu, a velha mãe adoptiva chegou-se a ele levantou-o como ele pedia. Todos se tinham tornado agora muito amáveis com ele. Um disse, “Anda, entra!”, outro, “Vem e senta-te , amigo”. “Não, aí não que o banco é duro, sem manta”, disse outro, “aqui está um bom assento para Kagsagsuk”. Rejeitando as ofertas, sentou-se com era hábito no banco duro ao lado do corredor de entrada. Alguns continuaram, “Temos uma botas muito boas para o Kagsagsuk”, e outros, “Ora aqui estão uns calções para ele”, e as raparigas começaram a rivalizar para fazer roupa para o rapaz. Depois do jantar, um dos da casa disse a uma delas que fosse buscar água para o “querido Kagsagsuk”. Era uma das que mais costumavam atormentá-lo. Quando ela voltou e depois de beber um pouco, puxou-a ternamente para si, por ser tão amável, mas de repente apertou-a, esmagando-a com tanta força que ela começou a espirrar sangue pela boca. Só disse: “ Olha, parece que rebentou !”. Os pais, contudo, chegaram-se de mansinho, “Não tem mal, ela não sevia para nada, só para buscar água.” Mais tarde, quando os rapazes começaram a chegar, Kagsagsuk chamou-os, “Que grandes caçadores de focas vocês hão-de ser!” , enquanto os abraçava e esmagava até à morte. Outros, matou-os arrancando-lhes os membros aos pedaços. Mas os pais só diziam, “ Não tem importância – era um inútil, só sabia brincar aos tiros”. Depois Kagsagsuk foi buscar e matou todos os homens da casa um por um.
Só poupou as pessoas pobre e humildes que tinham sido gentis com ele, e viveram todos à custa das provisões que tinham sido armazenadas para o inverno. Também os ajudou aprendendo a usar os kayaks, começando por remar perto da costa, depois afastando-se cada vez mais pelo mar dentro. Em breve viajava para Norte e para Sul no seu kayak. Orgulhosamente passeava por todo o território para mostrar a sua força; por isso ainda hoje é conhecido por toda a costa, e em muitos sítios ainda há marcas das suas proezas, e por isso é que esta história se supõe ser verdadeira.
* nestas latitudes não há árvores, qualquer pedaço de madeira é um bem precioso.
Sem comentários:
Enviar um comentário