quarta-feira, 22 de abril de 2009

Contos e Lendas do Norte - III

Continua neste blog um pequeno ciclo dedicado a narrativas dos povos do ártico. São histórias transmitidas oralmente de geração em geração, pois esses povos não dispunham de escrita até há pouco. Mais do que contos morais ou de narrativas mitológicas, são testemunho de uma forma de vida, de valores civilizacionais, de pormenores estranhos de um dia a dia muito diferente do nosso. E mesmo quando a violência surge, integrada na violência da natureza circundante, enquadra-se numa estética tão surpreendente (como sucede p.ex. com o cinema japonês) que, em vez de nos chocar, nos deixa perplexos perante um tal mundo, de beleza difícil de entender.

Kagsagsuk

Era uma vez um rapazito órfão que vivia na companhia de homens maldosos. Chamava-se Kagsagsuk e só contava com uma mãe adoptiva, uma velhinha miserável. Viviam numa arrecadação ao lado do corredor de entrada da casa, e não eram autorizados a entrar na sala principal. Kagsagsuk nem sequer entrava no barracão, preferindo ficar no corredor e procurar calor entre os cães de trenó. Às vezes, de manhã, quando os homens saíam a levantar os cães à força de chicote, atingiam também o pobre rapaz que dormia no meio deles. Punha-se a ganir Na-ah, Na-ah, e os outros troçavam dele por se portar como um cão. Quando os homens lá dentro se banqueteavam com várias carnes e pele de morsa, o pequeno Kagsagsuk espreitava sobre a entrada, e às vezes os homens erguiam-no com maldade, segurando-o com os dedos pelas narinas. Assim estas eram cada vez maiores, embora o rapaz nada crescesse. Davam-lhe bocados de carne congelada, sem uma faca para a cortar, e mandavam-no usar os dentes como os cães. Às vezes puxavam e tiravam-lhe um ou dois dentes, e protestavam que ele andava a comer demais.

A pobre mãe adoptiva conseguiu arranjar-lhe umas botas e uma pequena azagaia de caçar pássaros para ele sair a brincar com outras crianças; mas como era pequeno e fraco atiravam-no para a neve e faziam-no rodopiar até ficar com a roupa toda branca de gelo; as raparigas ainda eram piores, cobriam-no de porcaria. Assim o rapazito passava a vida atormentado e troçado por todos, e não crescia a não ser nas narinas.


Aos poucos foi-se aventurando nas montanhas, sem ajuda, procurando recantos solitários, onde cismava como havia de se tornar mais forte. A mãe tinha-lhe transmitido algumas ideias. Um dia, entre duas montanhas, levantou-se e berrou: “ Deus da força, vem ! Deus da força, vem ter comigo”. Apareceu um animal enorme, um amarok, que é como um grande lobo. Kagsagsuk estava cheio de medo, ia desatar a correr; mas o bicho ultrapassou-o , enrolou-o com a cauda e atirou-o ao chão. Incapaz de se mexer, ouviu um som como chocalhar e viu vários ossinhos de foca , como se fossem brinquedos, caindo do seu próprio corpo. Disse o amarok: “ São estes ossos que te impedem de crescer”. E repetiu – enrolou o rapaz com a cauda, apertou, e mais ossos cairam – mas já eram poucos. À terceira vez, os últimos ossitos cairam na neve. À quarta vez, o rapaz desequilibrou-se um pouco, mas à quinta nem isso – saltou sobre a neve. Disse o amarok: “ Se é teu desejo ficar mais forte e vigoroso, podes vir ter comigo todos os dias”.

No regresso a casa, Kagsagsuk sentia-se leve, e até deu uma corridinha, aos pontapés nas pedras do caminho. Ao chegar a casa, as raparigas que estavam de guarda aos bebés viram-no e riram-se: “Kagsagsuk vem aí! Vamos cobri-lo de lama!”. Os rapazes bateram-lhe e atormentaram-no como de costume. Não se opôs e, como era hábito, foi dormir com os cães. Desde então, foi todos os dias ter com o amarok e seguiu sempre o mesmo procedimento. Sentia-se cada vez mais forte.

Um dia, o amarok já nem foi capaz de o derrubar. E disse: “ Pronto, chega. Os seres humanos já não te podem vencer. Mas por enquanto mantém os teus hábitos de vida. Quando chegar o inverno e o mar gelar, é altura de te mostrares; surgirão três grandes ursos, e serás capaz de os matar com as tuas mãos.” Kagsagsuk asssim fez. Correu para casa e manteve os seus hábitos, sendo atormentado como sempre.

Chegou o Outono, e um dia os pescadores dos kayaks chegaram com um grande tronco de madeira* apanhado à deriva no mar. Deixaram-no na praia amarrado a grandes pedras, porque era pesado para levar para casa duma só vez. Ao cair da noite, Kagsagsuk disse à velha bisavó: “ Dá-me as botas, mãe, também quero ir lá abaixo ver a madeira”. Quando já todos dormiam, esgueirou-se para a praia e, soltando o tronco, pô-lo às costas e levou-o para as trazeiras da casa, onde o enterrou. De manhã, o primeiro homem a chegar à praia gritou: “A madeira desapareceu!”. Quando todos viram as cordas cortadas, ficaram espantados, pois não havia ventos nem marés que pudessem ter arrancado o tronco. Mas uma velha, detrás da casa, chamou: “Venham ver! Está aqui!”. Todos correram para lá gritando, “Quem fez isto? Há entre nós algum homem com força sobrehumana!”. Os jovens começaram a dar-se ares, como se cada um pudesse ser o forte desconhecido. Impostores!

Começou o Inverno, e os homens da casa grande vizinha do barracão de Kagsagsuk trataram-no ainda pior que antes; mas ele continuou submisso, para não levantar suspeitas. Até que o mar congelou, impedindo a caça às focas. Quando os dias começaram a durar mais, os homens chegaram um dia a correr com a notícia de três ursos que subiam um iceberg. Ninguém se atreveu a ir no seu encalço. Era a hora de Kagsagsuk agir. “Mãe”, disse, “ dá-me as botas, também quero ir ver esses ursos”. Ela não gostou, mas lá lhe atirou as botas, troçando: “Então vai, e arranja-me em troca uma pele para o sofá e outra para a manta!”. Calçou as botas, apertou os farrapos de roupa que vestia, e saiu à procura dos ursos. Os homens que estavam fora viram-no e comentaram, “ Olha se não é Kagsagsuk! Onde irá ele? Dêem-lhe uns pontapés!”, e as raparigas, “Deve ter perdido uns parafusos!”, mas Kagsagsuk passou a correr por todos eles como se fossem um cardume de peixinhos. Corria tanto que os calcanhares quase lhe subiam até ao pescoço, e a neve saltava e espumava , faíscando nas cores do arco íris. Subiu o iceberg à força de mãos, e logo o maior urso levantou a garra. Kagsagsuk rodopiou e agarrou-o pelas patas da frente, lançando-o contra o iceberg de tal modo que as coxas se separaram do corpo, depois atirou-o à assistência gritando, “ O meu primeiro troféu; agora esquartejem-no e dividam entre vós”. Os outros pensaram, “ O próximo urso mata-o”. Mas o processo repetiu-se, e o urso foi atirado contra o gelo. Mas com o terceiro, apenas o agarrou pelas patas e pô-lo às voltas a girar por cima da cabeça, lançando-o contra um deles, “Este tipo portou-se vergonhosamente comigo”, e depois, atingindo outro, “Esse ainda me tratou pior!”, até que todos se tinham posto em fuga para casa entre grande consternação.


Ao chegar a casa, foi direito à bisavó com a pele de dois ursos, “Uma para o sofá, outra para a manta!”, e deu ordem para que a carne do terceiro urso fosse arranjada e cozinhada. Pediram então a Kagsagsuk que entrasse na sala grande da casa; em resposta, espreitou pela soleira da porta e disse, “Não consigo entrar, a não ser que alguém me levante pelas narinas.” Como mais ninguém se atreveu, a velha mãe adoptiva chegou-se a ele levantou-o como ele pedia. Todos se tinham tornado agora muito amáveis com ele. Um disse, “Anda, entra!”, outro, “Vem e senta-te , amigo”. “Não, aí não que o banco é duro, sem manta”, disse outro, “aqui está um bom assento para Kagsagsuk”. Rejeitando as ofertas, sentou-se com era hábito no banco duro ao lado do corredor de entrada. Alguns continuaram, “Temos uma botas muito boas para o Kagsagsuk”, e outros, “Ora aqui estão uns calções para ele”, e as raparigas começaram a rivalizar para fazer roupa para o rapaz. Depois do jantar, um dos da casa disse a uma delas que fosse buscar água para o “querido Kagsagsuk”. Era uma das que mais costumavam atormentá-lo. Quando ela voltou e depois de beber um pouco, puxou-a ternamente para si, por ser tão amável, mas de repente apertou-a, esmagando-a com tanta força que ela começou a espirrar sangue pela boca. Só disse: “ Olha, parece que rebentou !”. Os pais, contudo, chegaram-se de mansinho, “Não tem mal, ela não sevia para nada, só para buscar água.” Mais tarde, quando os rapazes começaram a chegar, Kagsagsuk chamou-os, “Que grandes caçadores de focas vocês hão-de ser!” , enquanto os abraçava e esmagava até à morte. Outros, matou-os arrancando-lhes os membros aos pedaços. Mas os pais só diziam, “ Não tem importância – era um inútil, só sabia brincar aos tiros”. Depois Kagsagsuk foi buscar e matou todos os homens da casa um por um.
Só poupou as pessoas pobre e humildes que tinham sido gentis com ele, e viveram todos à custa das provisões que tinham sido armazenadas para o inverno. Também os ajudou aprendendo a usar os kayaks, começando por remar perto da costa, depois afastando-se cada vez mais pelo mar dentro. Em breve viajava para Norte e para Sul no seu kayak. Orgulhosamente passeava por todo o território para mostrar a sua força; por isso ainda hoje é conhecido por toda a costa, e em muitos sítios ainda há marcas das suas proezas, e por isso é que esta história se supõe ser verdadeira.

* nestas latitudes não há árvores, qualquer pedaço de madeira é um bem precioso.

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