quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Aventura Maravilhosa

Ler e Reler

Dos livros de Aquilino Ribeiro, este é o que li mais tardiamente mas também um dos que mais gostei. É uma ficção histórica sobre o sebastianismo - a saga de D. Sebastião após Alcácer Quibir, vendido como escravo para casa de um argelino rico, onde vive a italiana Lela Bianca que cai de amores por ele.

A escrita de Aquilino é riquíssima e saborosa de ler como sempre; mas desta vez ainda acresce uma prodigiosa imaginação ficcional: não queremos que chegue ao fim aquela aventura maravilhosa.

Uma recomendável leitura de férias. Os primeiros parágrafos, descrevendo a batalha:

D. Sebastião carregou à testa dos seus barões. Vestia armas azuladas, o elmo com que seu avô Carlos V entrara em Tunes, e montava o Pérsio, de mãe que diziam ter alcançado do vento, corredor tão ligeiro e de bom andar que passava na areia sem deixar o sinal das ferraduras. Acaudatavam-no doze pajens com outros tantos cavalos de raça, do mais estremado que aparecera por feiras e coudelarias.

Já a essa altura o terço dos aventureiros, capitaneado por Álvaro Pires de Távora, voltava da primeira refrega com os ginetes de Mulei Ahmede. De armas falseadas uns, gotejando sangue muitos deles, o turbilhão do recuo envolveu a manga dos tudescos, de tal jeito que deixou de se ver o seu balsão quarteado de preto e amarelo flutuar aos ventos da batalha. Debalde Martim de Borgonha, levado no roldão, vociferava em castelhano:
- hombres, verguenza!
A desordem ganhava a picaria à retaguarda. Entretanto os arcabuzeiros italianos eram britados sob o peso da cavalaria moura e o fogo dos seus mosquetes, Mas os aventureiros, protegidos pela infantaria de Tânger, tornavam á carga contra os elches. E a sua bandeira, duas pirâmides de ouro em fundo verde, viu-se de novo voejar por cima do mar humano, ora trémula, ora ovante, conforme os sacolejões da avançada. Saiu-lhes, porém, de face e de flanco tal poder de inimigos que as suas cinco filas flectiram e foram rotas. Depois de rotas, desfeitas, e não quedou mais que uma meia dúzia de combatentes de pé a afrontar a mourama com a raiva e o desespero de quem não tem melhor recurso do que vender cara a vida.

Quando por sua vez a cavalaria do duque de Aveiro se lançou ao ataque, o corpo de batalha dos cristãos dobrava em toda a linha. Muito provada do tiro à espera que dessem Santiago, mortos ou postos fora de combate os espingardeiros em que devia estribar-se, quebrantada de moral pelo que via, mesmo assim o seu arranco causou grande estrago no inimigo. Mas faltou unanimidade ao rompante e força foi à vanguarda virar de rèdea, vindo atropelar em seu espavorido refluxo espanhóis e romanos. O duque perdera-se na investida. Incurvado na sela sobre a pesada lança, de caradura torva à frente do pelotão, lambuzado de sangue, abrira grande clareira nos africanos. Tombou com um pelouro que lhe abriu corredor do umbigo para as costas depois de trespassar o broquel.

Tentaram ainda uns tantos cavaleiros refazer a frente desbaratada. Tolheram-se com os atiradores a cavalo de Mohâmede Taba, renegado genovês, que avançavam num assopro, até poder plantar o tiro, e num assopro retiravam a recarregar as escopetas. O mestre-de-campo-general, que atirara os fronteiros de África para a artilharia inimiga, embora não chegasse a pôr mão em seus camelos e colubrinas tonitruantes, voltava depois de apresar um estandarte. Mas, ao mesmo tempo, no centro e no couce do quadrado os terços baralhavam-se com gastadores e carriagem. Em seu desmancho, os soldados, quase todos eles bisonhos, lançavam armas por terra e ofereciam pulsos aos grilhões. Caíra já Aldana; Stuckley; D. Alonso de Aguilar com um rugido na boca:
- ao inferno vá direito quem vira a cara !
Caíra o bispo de Coimbra, de estoque em punho; António de Sousa, filho do governador da Casa da Suplicação, quinze anos, imberbe, sem elmo, de rosto aos janízaros; o barão de Alvito, entrando os mouros com o fez dum turco nos dentes, como lobo; o ancião D. Garcia de Meneses que, derribado da montada, teve ainda alma de arrancar o alfange das mãos dum azuago e embainhar-lho no ventre. Desaparecera Sebastião de Sá jogando-se ao inimigo com chibança à voz desastrada de ter:
- o meu cavalo não sabe voltar!
Caíra Simão de Meneses com um estandarte sarraceno enrolado no braço; Gonçalo Nunes Barreto, de espada ao alto a pingar sangue; D. João da Silveira, morgado da Sortelha; D. Rodrigo de Melo, duma virotada, quando tirava a borracha da boca; Manuel Quaresma, vedor da fazenda, e o filho João; D. Álvaro de Melo, dum tiro de bombarda; D. Lourenço da Silva, regedor da justiça, dum tiro de escopeta em pleno peito; Pedro de Mesquita, bailio de Leça, que comandava a artilharia; e quatro, nada menos, dos cinco irmãos Meneses, da casa de Louriçal, bravos e unidos como os quatro irmãos Aymon.

A calmaria era insuportável. Recalcada pelo céu de canÍcula contra o solo, uma nuvem de pó e cinza, a cinza do feno e panasco que africanos e cristãos haviam queimado à compita pela várzea para que não houvesse empeço à manobra, sufocava os combatentes. O fragor da luta e a gritaria dos mouros, sobretudo, eram de ensurdecer. Não se percebiam as vozes de comando.


Aquilino Ribeiro, Uma Aventura Maravilhosa, Bertrand, 1985

1 comentário:

Alberto Velez Grilo disse...

Obrigado Mário, pela recomendação.

Vou procurar.