sábado, 23 de junho de 2018

Mily Possoz, admirável ilustradora e desenhadora, gentil modernista


Emília Possoz nasceu em 1889, de pais belgas, pessoas viajadas: partindo de Antuérpia e Liége, foram casar em Londres e vieram residir para Portugal. Mily foi ainda jovem para Paris, em 1905, frequentar uma Academia de pintura, e aos 16 anos viajou pela Holanda, Alemanha e Bélgica (e não havia Erasmus nem Interrail).

Muito independente, bem humorada, cosmopolita, aventureira, com intensa vivência em meios de vanguarda artística, grande amiga de Vieira da Silva e com um percurso de vida semelhante, Mily Possoz tornou-se uma mulher admirável do início do século XX. A visão serena e lírica que imprimiu a toda a sua criação reflecte o seu modo de ser, afectiva e delicada.

'Jardim com figuras', 1918

Em desenho, gravuras, guaches ou óleos, e como ilustradora, representou jovens e crianças, figuras do povo, gatos, paisagens com motivos de Sintra ou do Alentejo.
'Jeune femme lisant', 1925

'Mulher com leque', 1930 -  Chagal ? Foram contemporâneos.

'Petite fille au col de dentelle', 1935


'Les tulipes', 1937

A decoração dos pavilhões do Japão na Exposição do Mundo Português (1940), é na altura um dos seus trabalhos mais marcantes, inspirado nos biombos Namban.

Em 1957, é conviada a criar obras para a decoração do Hotel Tivoli em Lisboa; actualmente ainda é a instituição que tem a maior colecção de obras de Mily Possoz. A sua pintura de cores fortes e pincelada vigorosa contrasta com a delicadeza dos desenhos.

Paisagem, Hotel Tivoli

Paisagem (prov. Sintra), Hotel Tivoli

Chaminés Alentejanas, Hotel Tivoli


Mily Possoz dedicou-se também à ilustração, começando neste "Viagens Aventurosas de Felicio e Felizarda ao Pólo Norte" de Ana de Castro Osório.



Mas foi o Livro da Segunda Classe de 1958, que lhe trouxe mais notoriedade, e ainda hoje em Portugal é a sua obra mais reconhecida:






Entre o último meio século de XIX e o primeiro de XX, houve uma extraordinária geração de notáveis mulheres que é marca de uma certa emancipação e civilização que não nos envergonha, antes pelo contrário: é um privilégio. Não falo de Amálias nem de Ferreirinhas, de Simones nem das Três Marias !, mas sim de seres femininos criadores, superiores e universais:

Emily Possoz (1889)
Florbela Espanca (1894)
Vieira da Silva (1908)
Maria Keil (1914)
Sophia de Melo Breyner (1915)
Agustina Bessa Luís (1922)
Ana Hatherly (1929)

Desde os anos 70 que as artes portuguesas são o que se sabe, uma miséria. E a culpa não é só da outra, não, do 'outro senhor'.

Sem título, de Mily Possoz. Picasso ?

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Mily Possoz está representada na National Gallery de Londres e no Museu de Cleveland, onde é identificada assim:


O desgosto de estar num país que só é reconhecido pelo futebol não tem fim.


domingo, 17 de junho de 2018

Arte Nova em Aveiro, um powerpoint


Das minhas curtas estadas em Aveiro, tinha uma colecção de fotos e folhetos sobre a arquitectura Arte Nova local, em particular obras de Silva Rocha e Ernesto Korrodi. Juntei tudo nesta apresentação. A designação "capital portuguesa da Arte Nova" é um  bocado exagerada - há muito mais obra  dessa corrente em Lisboa ou Porto. Mas como Aveiro é uma pequena cidade, o pouco que há sobressai.

Aqui:
http://www.authorstream.com/Presentation/MarioRGoncalves-3475680-art-nouveau-aveiro/
http://www.authorstream.com/Presentation/MarioRGoncalves-3475680-art-nouveau-aveiro/

terça-feira, 12 de junho de 2018

A 5ª de Sibelius por Arvo Volmer na Casa da Música


Na passada sexta-feira, 8, esteve na Casa da Músiica Arvo Volmer a dirigir a Orquestra num belíssimo programa (finalmente !) com o jovem violinista Benjamin Schmid.

Começo pela irritação dos lugares vazios, certamente assinaturas de gente que prefere futebol, algarve ou centro comercial. E bons lugares!.. A iniciar o concerto, a abertura do Sonho de uma Noite de Verão de Mendelssohn, obra muito ouvida mas cuja sábia e dinâmica arquitectura é sempre de apreciar. Não saiu mal, mas não deslumbrou. Volmer não é Gardiner.

Seguiu-se o concerto para violino nº 3 de Mozart. Embora igualmente bem conhecido, não tem sido muito frequente na CdM. Como Volmer não é Gardiner, o Mozart dele saiu convencional, mas o violino de Schmid não ! Até me desconsolou na primeira entrada, mas à medida que aqueceu foi mostrando uma mestria admirável e uma abordagem pessoal de algumas passagens, sempre muito bem executadas. Só as cadenzas modernaças não me agradaram, mas o virtuosismo foi em crescendo e a obra terminou em ovação. Não é von Mutter, mas foi uma audição empolgante. Tivemos direito a um Paganini vertiginoso como encore (Caprice nº 24).


A 5ª é a minha preferida sinfonia de Sibelius, uma obra genial que deu ao compositor muitas dores de cabeça: o trabaho foi muito atribulado, com várias reescritas, devido sobretudo à má recepção da anterior 4ª (fraquinha) e às novidades que corriam no campo musical europeu, com o surgimento de dissonâncias, atonalidade, música contínua e outros experimentalismos que tentavam quebrar as convenções, sobretudo no campo sinfónico.

Com toda essa efervescência, a 5ª acabou por ficar riquíssima de invenções - harmonias inesperadas, quebras de ritmo, sincopismo, transição do lirismo para explosivos tutti com os sopros em destaque a dar uma sonoridade operática; o mais genial é que Sibelius consegue fazer a sinfonia transitar por todo este percurso acidentado de uma forma fluida, melódica, poética - como se sabe, a inspiração, dizia ele, vinha da natureza nórdica, florestas e lagos, montanhas e fiordes. Não digo que se 'vejam' esta coisas no decorrer da música, mas sim que tem uma beleza variada, rica de detalhe, luxuriosamente harmónica, que se assemelha a uma paisagem escandinava.


A surpresa maior foi a direcção de Volmer, com uma desenvoltura e expressividade de quem já 'nasceu' com esta música no sangue - ele é Estoniano, mesmo de ali ao lado. Deixou a orquestra respirar, solta, mas sempre com a sonoridade controlada. Foi a melhor 5ª que já ouvi, e o melhor concerto da Casa da Música este ano até agora: tremendamente bom.

Para quem não conhece, duas gravações recomendadas:
- Colin Davis com a LSO
- Osmo Vanska com a Orq. da Letónia (Lahti)

No youtube, para aqui deixar, encontrei em vídeo uma razoável interpretação - e muito bem filmada:
Thomas Dausgaard, Orquestra Real da Dinamarca


sexta-feira, 8 de junho de 2018

Madame Serpente, a Senhora Branca: os imortais que querem ser humanos


Madame Serpente Branca é um conto mítico chinês que ganhou grande popularidade: um poderoso demónio em forma de serpente, ao fim de mil anos, transforma-se numa bela mas humana mulher para conhecer o amor. E encontra-o na Ponte Quebrada do Lago Poente de Hangzhou, na pessoa de Xu Xian. Casa com ele e vivem uma paixão tão intensa que atraem a curiosidade e a desconfiança de um monge, capaz de entrever a serpente oculta atrás da foma humana.

Quando o monge sabe que Madame Serpente está grávida, fica estarrecido com semelhamte violação de todas as tradições e tabus, sejam de raça, de religião, divinos e profanos. Resolve intervir confrontando o marido, que acaba convencido. E a (in)esperada tragédia surge quando Xi Xuan engana traiçoeiramente a mulher obrigando-a a retomar a forma de serpente.

O que mais emociona é que a imortal Serpente tenha abdicado dessa qualidade divina e assumido a forma mortal só para conhecer a mais humana das emoções. Por um breve instante tem nos braços esse amor desejado, mas acaba por perder tudo, embora haja versões com fim feliz. A narrativa foi transformada em ópera, cujas récitas costumam ter grande sucesso.

No Museu do Oriente há um exemplar de um belo livrinho ilustrado, tal historinha de B.D. à maneira oriental, com estas ilustrações que vou mostrar.

Como em todas as narrativas míticas orais, há muitas variações; a que está exposta no Museu do Oriente joga na amizade entre as duas serpentes, a Branca (libertária) e a Azul (conservadora), que se mantêm em contacto durante toda a aventura mundana de Madame Branca.

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1.
Dois Espíritos de Serpente, a Serpente Branca e a Serpente Azul, descem da montanha para gozar as delícias da Primavera, tomando a forma de belas mulheres no Lago Poente de Hang Zhou.

2.
Para atravessar o lago, pedem a um barqueiro que as aceite a bordo, onde já se encontra o jovem Xu Xian. Este, encantado, empresta o seu guarda-chuva à bela Senhora Branca, que de imediato se apaixona por ele. Combinam um encontro na Ponte Quebrada.

3.
Quando Xu Xian aparece para reaver o guarda-chuva, a Serpente Azul propõe a Xu Xian que se case com a amiga. Ele aceita de imediato.

4. Mas o monge Fa Hai, do santuário do Monte d'Ouro, revela a Xu Xian que a mulher é uma Serpente Mágica disfarçada. Propõe um plano para a revelar: dar-lhe a beber álcool durante as festividades das Barcas-Dragão.

5. Decorrem as festas, e Xu Xian força a esposa a beber vinho, como é costume local; a Serpente Branca ainda tenta que a sua magia possa evitar o efeito; mas sente-se mal e corre a refugiar-se no quarto.

6. Quando Xu Xian a segue e entreabre os cortinados, vê uma grande serpente branca e desfalece do choque.

7. Ainda mal refeito, sobe ao Monte d'Ouro e pede refúgio junto do monge Fa Hai, que o recolhe e mantém em clausura.

8. E agora começa a parte mais épica: as duas Serpentes (a Branca já recuperada) aliam-se aos animais aquáticos para conseguir resgatar o infeliz Xu Xian do mosteiro. Levantam as águas e inundam o santuário do monge Fa Hai, que acaba por ceder, permitindo que continuem entre os humanos até ao nascimento do bébé.

9. Comovido pela devoção da esposa, lutando contra sentimentos contraditórios, Xu Xian volta à Ponte Quebrada do Lago Poente para se reencontrar com a esposa; mas a furiosa Serpente Azul tenta matá-lo. É salvo pela Senhora Branca, que lhe conta da sua gravidez, e com renovadas promessas de amor retomam a sua vida em conjunto.

10. Assim que a criança nasce, Fa Hai vem buscar as duas serpentes e leva-as aprisionadas para um Pagode no Monte.

11. Anos mais tarde, o rapaz nascido de Xu Xian e da Senhora Branca vai prestar culto junto a Pagode, e consegue ver a mãe por breves instantes.

12. O Pagode acaba por ser destruído e as duas Sepentes conseguem escapar; procurando vingança, acabam por chamar a atenção de Buda que dá o castigo final a Fa Hai.

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Ora acontece que tudo isto lembra muita coisa lida e vista, desde pelo menos a Grécia antiga; no meu caso, recordei a obra-prima de Wim Wenders "Asas do Desejo" , no original "Asas sobre Berlim". Nessa hstória os espíritos não eram serpentes mas sim dois anjos, Damiel e Cassiel; Damiel, apaixonado, sente a tentação de ser humano mesmo que perdesse para sempre a imortalidade. Além do amor, irá sentir tudo o que há de bom e de mau.

Ah, mais uma coisinha: o Lago Poente de Hangzhou existe, assim como existe o Pagode Leifeng, octogonal e com cinco andares, construído em 975, colapsado em 1924 e depois reconstruído.



segunda-feira, 4 de junho de 2018

'Ales Stenar', as pedras Viking de Ale na península de Scania (Skåne)


Talvez seja o mais importante, fascinante e enigmático monumento pré-histórico do Norte da Europa - onde a escrita só chegou pelo ano 1000, com a cristianização. Sem a escrita romana e limitados à primitividade das Pedras Rúnicas (com sinais gravados), os Vikings deixaram poucos testemunhos da sua era, daí a preciosidade de monumentos como este, datado de cerca de 600 DC.

Alinhamento com a forma de um barco no alto de uma falésia.


Pedras de Ale (Ales Stenar)
Península de Scania, Suécia
Coordenadas: 55° 23′ N, 14° 03′ W


É um navio-túmulo, feito de 59 obeliscos plantados entre o céu e o mar, numa pastagem ao alto de um promontório quase a pique sobre o mar, perto do pequeno porto de Kåseberga. A cidade mais próxima é Ystad. Quem construiu, e porquê, ou para quê ?


Tudo indica que seja um monumento fúnebre, talvez dedicado a um chefe Viking que se afundou com o seu navio e tripulação nesta costa; outros tendem mas para a tese de relógio astronómico (como Stonehenge) pois nos solstícios o sol está exactamente alinhado com as duas pedras extremas, à "popa" e à "proa" ! Ah, sempre estas 'coincidências'...


Acordo há, sobre a datação: entre 500 e 1000 DC, durante a tardia Idade do Ferro nórdica. Mas os arqueólogos descobriram que as pedras assentam numa muito mais antiga câmara funerária, datada de há cerca de 5500 anos. Quem sabe se o alinhamento em forma de barco simbolizava o transporte dos mortos subjacentes para a sua morada eterna ? Aqui, tão longe da barca de Caronte...

Os megalitos são na maioria de granito, mas há duas pedras de calcário e uma de quartzite, provavelmente não originais mas resultado de restauros antigos. Mal podemos imaginar como foram levantados pedregulhos de toneladas e arrastados pelos campos, subindo uma encosta íngreme, e por fim alinhados com cuidado e precisão com os astros celestes.


'Ale' porquê ?

O monumento era conhecido como Heds Stenar (Heesteena) no séc. XVIII ( e ainda hoje pelos locais), e existe uma menção de Stene no séc. XVII. Não se saba a origem do nome Ale.


O escritor e realizador sueco Hasse Alfredson defendeu a ideia das funções astronómicas em 1970. Com uma simples bússula verificou que a linha central, eixo de simetria do navio, apontava para o sol nos solstícios: no Verão, o sol poente alinha com a proa, no inverno o nascer do sol alinha com a popa.
Göran Lind, professor da Universidade de Lund, afirmou em 1975 ter confirmado essa hipótese de Alfredson com equipamentos mais sofisticados. Desde então não faltam estudos mais ou menos esotéricos, em que coincidências geométricas e cosmológicas são amplamente especuladas, sem credibilidade científica.


Monumento tumular, calendário astronómico ou sítio de ritos religiosos ? ou tudo ?  O melhor da História é quase sempre o que (ainda) não se sabe.



Talvez vá visitar as Stenar um dia destes.