domingo, 15 de dezembro de 2019
Olivia, cidade-mentira, uma das 'Invisíveis' de Calvino
Já mais de uma vez referi que As Cidades Invisíveis de Italo Calvino é para mim uma das obras primas da literatura de sempre, livro a que sempre regresso e que foi também em parte fundador deste meu Livro de Areia.
Um dos mais geniais textos é o que descreve a imaginada Olívia. Espanta-me como nesta metafórica cidade há tanto das cidades onde actualmente vivemos na Europa, cidades de bem estar, requinte e cultura para muitos, mas de miséria, escravidão no trabalho ou servilismo para muitos outros; são duas cidades numa, e designá-la por um só nome é uma forma de mentira; mas a mentira, diz Calvino, "está nas coisas".
Há um colega bloguista que mostra o Porto nesta duplicidade - Cidade Surpreendente e Cidade Deprimente. Isso aplica-se a muitas outras por essa Europa fora.
[Marco Polo dirige-se a Kublai Khan (1260-1294), o neto de Gengis Khan, Imperador da Mongólia]
As cidades e os sinais. 5.
Ninguém sabe melhor que tu, sábio Kublai, que nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve. E contudo entre eles há uma relação. Se te descrevo Olívia, cidade rica de produtos e de lucros, para significar a sua prosperidade não tenho outro meio que não seja falar de palácios de filigrana com coxins de franjas nos parapeitos das janelas geminadas; para lá das grades de um pátio, uma girândola de repuxos rega um prado onde um pavão branco abre em leque a sua cauda. Mas deste discurso tu compreendes logo que Olívia está envolvida numa nuvem de fuligem e gordura que se pega às paredes das casas; que no tropel das ruas os reboques em manobra esmagam os peões contra as paredes. Se devo contar-te da laboriosidade dos habitantes, falo das oficinas dos arreeiros odorosas de couro, das mulheres que tagarelam entrelaçando tapetes de ráfia, dos canais suspensos cujas cascatas movem as pás dos moinhos: mas a imagem que essas palavras evocam na tua consciência iluminada é o gesto que acompanha o mandril contra os dentes da fresa ao ritmo fixado pelos turnos das equipas de trabalho. Se devo explicar-te de que maneira o espírito de Olívia tem a tendência para uma vida livre e uma civilização requintada, falar-te-ei de damas que navegam cantando de noite em canoas iluminadas por entre as margens de um verde estuário, mas é só para te recordar que, nos subúrbios onde desembarcam todas as noites homens e mulheres como filas de sonâmbulos, há sempre quem no meio do escuro desate a rir, quem dê o sinal de partida às brincadeiras e aos sarcasmos.
Isto talvez tu não saibas: que para falar de Olívia não poderia fazer outro discurso. Se houvesse uma Olívia realmente de janelas e pavões, de arreeiros e tecelões de tapetes e canoas e estuários, seria um miserável buraco negro de moscas, e para o descrever deveria recorrer às metáforas da fuligem, do chiar das rodas, dos gestos repetidos, dos sarcasmos. A mentira não está no discurso, está nas coisas.
Há dias em que é assim que sinto a minha cidade. E cada vez mais.
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1 comentário:
Já li há muito tempo, já poderia reler pois pouco recordo. Uma das coisas que mais lastimo é a minha fraca memória.Também conheço esses dois blogues! Não sei se ainda são actualizados!
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