sábado, 24 de setembro de 2022

Três poemas, três poetas da Ucrânia


Foi publicada em França uma recolha bilingue de 24 poemas ucranianos, alguns dos poetas já divulgados antes por exemplo na Paris Review.  Jogando com a tradução francesa, a inglesa e a original com ajuda do google translate, cheguei a uma versão portuguesa que me satisfaz. Aqui vão:


Ella Yevtushenko (Kiev)

Um após outro os dias são idênticos
manhãs de esperança tardes de cansaço
dias cinzentos pérolas de chuva
fio após fio
a corda da guerra é trançada.

Entre uma cidade e outra
entre ontem e amanhã
entre poder e dever
o nosso amor
destemido
funambula sobre o abismo.



Serhiy Zhadan (Luhansk)

Um minuto antes, como vai chover,
sentirás a pele tremer sob a carícia
das gotas - ainda nenhuma caiu
e já sobre o teu corpo se abatem.

Assim como os pombos que vivem na rua
sentem o gosto do grão antes de o bicar,
o soldado que irão reportar desaparecido
já antes sente o corpo deslocado.

O riso que me virá amanhã
nas lágrimas do dia o adivinho.
Um minuto antes que aqui estejas
já eu te estou ouvindo a chegar.



Lyudmyla Khersonsky (Odessa)

bom dia, bem vindos a esta casa.
perdão, não está arrumada.
ontem um míssil caiu na cozinha
depois de destruir outros andares.
para cozinhar é desconfortável,
aqui era o fogão, ali a mesa,
era pequena, com uma toalha bordada,
não se descalcem, está cheio de cacos,
vão para o corredor, fica entre paredes,
sentem-se no chão, vou pôr uma coberta,
sirvam-se, comam doces, à vontade,
façam como em vossa casa.

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Slava, poeti !

domingo, 18 de setembro de 2022

Uummannaq, viver longe e em sossego



Volto ao escapismo para o Ártico remoto. Sabe-me bem partir para cenários que façam esquecer a desolação do mundo, e o ruído, o incessante ruído. Up, up and far away :)

A norte de Disko Bay e frente à grande ilha canadense de Baffin, Uummannaq fica no centro da costa oeste da Gronelândia, enquadrada num cenário ártico fantástico, rodeada de montanhas, fiordes, glaciares e icebergs no mar.

 

Uummannaq está situada numa pequena ilha de 12 km2, na base de uma montanha cuja forma lhe deu o nome: Uummannaq  significa 'monte coração'.

População: cerca de 1500 inuit

Coordenadas: 70°40′ N, 52°07′W - 590 km a Norte do Círculo Polar.

As temperaturas variam de -15ºC a +12ºC (Julho)

Com uma altura de 1170 m, a montanha é a mais alta da costa ocidental da Gronelândia, um marco geográfico muito reproduzido em fotos e pinturas. A grande casa colonial amarela é agora o Hospital.

Um dos edifícios mais modernos é a Escola:

A Atuarfik (=escola) Edvard Kruse tem cerca de 200 alunos.


Há algus anos vigorava um código de cores - amarelo para hospital, vermelho para escola e museu, etc - esses códigos deixaram de ser aplicados. Cada um usa a cor que quiser.


O casario sobre a encosta rochosa não permite arruamentos; apenas escadarias facilitam a deslocação.

A povoação colonial foi fundada em 1763, como base para caça e pesca, sobretudo pesca da baleia e do halibut. Tem agora uma fábrica moderna de processamento e conserva e um terminal de carga.

Quando o porto está livre de gelo, o abastecimento faz-se pelos navios da Arctic Line. Fruta e instrumentos musicais (!) estão entre os mais desejados.

O núcleo mais antigo de Uummannaq agrega-se num quarteirão vermelho que é o local de actividades culturais.



Junto com a Igreja, formam o centro cívico da cidade.

A Igreja e a antiga casa do médico, agora casa-museu.

A Igreja e o Museu 


Não é muito antiga, evidentemente: foi construída em 1935, em granito local, o que é uma raridade neste país.

 O que já é habitual, é conter um navio votivo, suspenso do tecto.



Casa tradicional de pedra e turfa

Ao lado da igreja, uma casa dos primeiros colonos (certamente caçadores de baleia) construida com a pedra local e coberta de turfa - substituída agora por madeira.


Há outra destas casas, convertida em alojamento turístico, e conhecida como casa do Pai Natal. 


A ideia de S. Nicolau ter esta cabana em Uummannaq foi-se estabelecendo e crescendo, tornado-se lucrativa. Muitas crianças de várias partes começaram a enviar cartas com pedidos de prendas ao endereço do Pai Natal em Uummannaq; todos os anos é instalada uma enorme caixa postal vermelha, e a povoação tornou-se a Rovaniemi da Gronelândia.
 

A casa colonial amarela é parte do Museu, que exibe artefactos e instrumentos de caça e pesca inuit, roupas tradicionais, antigos kayaks e umiaks, documentos escritos e mapas.



Uma das secções mais relevantes diz respeito à presença em Uummannaq de Alfred Wegener, o geólogo e meteorologista que descobriu a Deriva dos Continentes; durante a terceira da suas quatro expedições à Gronelândia, esteve neste local em 1929, tendo recrutado uma equipa inuit e encomendado estes trenós de fabrico local, guardados no jardim do museu.

Os trenós de Wegener


O cientista alemão seria vítima de uma tentativa de reabastecimento a camaradas da estação Eismitte, no centro da capa de gelo, sob 50-60º negativos; está agora sepultado sob uma camada de muitos metros de gelo, cerca de 100 km a nordeste da cidade.
As expedições de Alfred Wegener através da Gronelândia; a cruz vermelha assinala o local aproximado se encontra sepultado ('Umanak' é a grafia antiga de Uummannaq).

Uummannaq Polar Institute

Fundado em 2007, trabalha para proteger a tradição local e promover a cultura - uma espécie de Centro Cultural: concertos, dança, exposições. São frequentes palestras sobre o clima.

Ensaio de orquestra - mesmo que não seja bem o tipo de música que se toca nas salas europeias...

Realiza-se em Uummannaq o festival Uummannaq Music - o mais setentrional palco de música do mundo, numa placa de gelo marinho.

'Dança Ártica' durante o Festival.
http://uummannaqmusic.com/

Outra tradição é a pesca no gelo; há mesmo um concurso anual.

À espera do halibut.

Mas nem só as tradições são promovidas neste quarteirão cultural:

Feira do livro na zona antiga da cidade.

Livros há, portanto; e já existe um café em Uummannaq, chama-se Cafémma, em baixo no porto.



Com uma manta, não se deve estar mal.

Outra boa esplanada com vista é a do Hotel.

Vista do hotel sobre o fiorde

O fiorde de Uummannaq é ainda notável pelo Glaciar Store, um dos poucos grandes glaciares estáveis, sem sinais de recessão, e um dos mais rápidos.

Glaciar Store, no fiorde de Uummannaq.

Uma frente impressionante, com 110 metros de altura por mais de 5 km de largura.

Outro atractivo para quem chega em visita é o sol da meia noite. Há excursões em barco.


Aeroporto de Uummannaq. As pequenas cidades da Gronelândia estariam isoladas sem os voos internos regulares da Air Greenland.

Numa 'aldeia' de menos de 1500 habitantes, admira tanta variedade de oferta, que até voos com ligação intercontinental inclui. Agora já começa a ter ruas pavimentadas e divertimento motorizado.

Serão felizes, os esquimós, aliás, inuit ? Não falta o abastecimento essencial; o cenário deslumbrante, a enorme liberdade e domínio de espaço e de tempo, a independência quase total, o forte sentido de pertença, tudo isso ajuda muito; mas há coisas que vêm mudando para pior - já falta caça e pesca, os jovens fogem para países mais ricos, os costumes e os laços vão-se perdendo, e sobretudo agora que chega informação sem fim do outro mundo que existe mais a Sul, o  mundo que podia seduzir pela sua civilização, as notícias são doenças, drogas, poluição, guerra. Viver em paz é o que lhes resta, a 70º N.

Seja como for: a Gronelândia está livre de ser invadida :)
Ou não ?

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Mapa do Mundo (à venda na loja local) numa perspectiva da Gronelândia: um continente enorme, luminoso e central ! Ah, que vaidade patriótica, aqui também.

 



sábado, 10 de setembro de 2022

O Museu das Pedras Pictas de Meigle


Meigle é um povoado pequeno e desinteressante a norte de Dundee, na Escócia. Nada faria prever a riqueza da colecção do museu local, o Meigle Sculptured Stone Museum, situada no edifício modesto da antiga escola primária. Uma viela anónima, um vulgar portão gradeado, um corredor ao longo de um pátio estreito. Estamos a entrar no Museu.

Numa sala única, estão 26 pedras Pictas, em calcário rosa, datadas entre os séculos VIII e X. As pedras estão numeradas, Meigle-1, Meigle-2 ... até à esplêndida Meigle-26.

O período Picta estende-se pelo menos entre os séculos III e X; os Pictos eram populações de língua celta do Norte e Leste da Escócia no período pré-Romano da Britannia e até aos primórdios da Idade Média, quando os Vikings iniciaram incursões de conquista nesse território. O primeiro registo escrito sobre os Pictos é de 297, quando eles opoem resistência tenaz aos Romanos, conseguindo defender o território que os Romanos chamavam Caledónia. 

No século VII os Pictos estavam já cristianizados; no século seguinte, sob o reinado do Rei Pherath, foi construído um mosteiro nessa região, em Meigle; são dessa época as pedras encontradas e agora expostas no Museu.


Meigle-1 

É a laje mais antiga, do século VIII. Figuras de animais ou míticas, nota-se bem um cão e uma serpente, cavaleiros e símbolos Pictas.

Meigle-2

Uma das mais bem conservadas e admiradas é esta laje do século IX, com mais de 2 m e 40, onde foi representado "Daniel na cova dos leões", que o folclore local interpretou como sendo Vanora (Guinivere), mulher do Rei Artur, a ser dada às feras para expiação da infidelidade. Segundo a lenda, Vanora, raptada por Mordred, esteve aprisionada em Meigle.


Meigle-3

Data do século IX, e nesta face foi representado um guerreiro com espada sob a capa, sentado numa sela com tecido listrado.

Meigle-4

Só algumas partes perduraram, e são obras primas de escultura.  


Meigle-5

                              O gato:


Meigle-7

Só sobreviveu o topo da laje. 

Meigle-26

Esta peça excepcional é uma pedra tumular ricamente esculpida com animais e cavaleiros em várias cenas, como por exemplo numa caçada.



Que Museu incrível. Se pudesse voltava hoje à Caledónia.