domingo, 28 de janeiro de 2024

A Iberia foi um Reino, sim !, e Mtskheta a capital.


Ibéria, não há só uma: além da 'nossa', houve outa Ibéria na Ásia Menor, na região oriental do Mar Negro que é actualmente a Geórgia. Era assim que Gregos e Romanos conheciam esse principado, antes e depois da sua conquista por Alexandre Magno.

Tem uma história atribulada, com muitas invasões e conflitos regionais. Estabeleceu uma Rota do Oriente alternativa à que benefeciava a Pérsia, passando a Norte do Império Sassânida, o que levaria o Shah Kavad I a subjugar a Ibéria (na altura Bizantina) em 526, aproveitando para tentar impor a sua religião. Os Romanos venceram na lendária Batalha de Dara, em 530. A Ibéria regressou ao culto Ortodoxo, que manteve desde 1008 quando foi fundado o Reino da Geórgia, unificando a Iberia e a Abcásia. 

Mtskheta, vista da margem sul do rio Aragvi

Mtskheta já era capital da Ibéria nos séculos III A.C. e V D.C., andava Alexandre o Grande por aquelas bandas. A época de ouro da cidade foi durante o Império Bizantino sob Constantino I, quando Reino da Ibéria ganhou protagonismo sob os grandes reis David IV (1089 -1125), e raínha Tamar a Grande (1160-1213), que derrotou os Turcos. 

Mas ainda viria outra invasão Turca, a construir mesquitas. depois a horda Mongol em 1236, seguida de novas invasões Turcas (oito!), massacres sucessivos sob o cruel otomano Timur que dizimou cidades e arrasou templos. A tudo a Geórgia cristã resistiu, e finalmente em 1400 ficou livre de Turcos, mas muito destruída, empobrecida, desgovernada, fragmentada em ducados e grão-ducados; o Império Bizantino que a protegeu cairia em 1453. A Geórgia ficou isolada, o único território cristão do Próximo Oriente, uma situação desesperada: rodeada de inimigos, cortada das rotas comércio, com a miséria e a desolação a alastrar pelo país.

Seguiu-se um longo período de insurreições e golpes de Estado, até ser proclamada a dissolução da Geórgia como Estado. E assim até 1801, quando após outra invasão iraniana (Kadjar) a Geórgia acabou anexada pelo Império Russo, com o qual acabara por ter boas relações. Começa então uma Renascença georgiana.

Nova independência de 3 anos com a queda do Czar,  até que a Geórgia volta a ser subjugada pela URSS de Lenine e Estaline em 1921. 

Fico agarrado a estes sítios remotos que nunca vi nem sequer conhecia, esquecidos da História mais mediática e contudo ricos de muita História, e que fazem parte da herança europeia, mais até que da asiática, mesmo que estejam afastados para lá do Mar Negro.

Mtskheta fica na confluência de dois grandes rios do Cáucaso - o Aragvi e o Mtkvari, ambos rotas comerciais entre o Oriente e o Ocidente. Actualmente conta cerca de 8 000 habitantes, e é o pricipal local de turismo patrimonial e religioso da Geórgia, capital da sua Igreja desde 327 por mérito de Santa Nino (Santa Cristiana), mulher missionária muito venerada na Geórgia, decisiva na adopção da religião ortodoxa unindo o país.

A catedral de Svétitskhovéli 


Esta imponente catedral está no meio de uma vasto adro, rodeada por uma forte muralha do séc. XVIII, com torreões, lembrando quase um 'kremlin' russo.

Construída no século XI, foi durante séculos o mais importante centro religioso da Geórgia. Além da igreja, inclui muralhas, um pórtico, torre sineira e residências. 



Por ser uma obra grandiosa e relevante da Idade Média, foi classificada pela UNESCO. 

Pórtico de entrada da muralha.

Altar mor (Iconostasis)

Fonte baptismal do século IV, onde terá sido baptizado o Rei fundador Mirian III.


Vista de um hotel em frente.

Mosteiro de Samtavro


Num estilo arquitectónico semelhante, o Mosteiro de Samtavro, do século XI, fica um pouco mais a Norte, ainda dentro da cidade. 


Também está cercado por muralha e tem entrada única sob um torreão-pórtico; a igreja tem planta de cruz e foi construída pouco depois da Catedral, sobre ruínas de um templo mais antigo.


Porta da Igreja.

Este convento, o mais visitado lugar santo da Geórgia, contem os túmulos de Mirian III e do santo monge georgiano Gabriel. Toda a família real da Geórgia foi aqui sepultada.


Actualmente Samtavro é um convento de monjas, dedicado à venerada Santa Nino, que viveu aqui e tem uma pequena capela com o seu nome a um canto da muralha, capela também do século XI.

Capela de Sta. Nino, no adro de mosteiro.

Vamos para a rua, vamos ver a vila; um ´templo´ mais a meu gosto e agrado é o famoso Café Tatin, quase mundialmente conhecido. É mais uma Casa de Chá, mas também restaurante e pequeno hotel.


Café Tatin (კაფე)



Instalado numa casa das mais antigas, com vários terraços de grade em ferro forjado que oferecem uma variedade de recantos e vistas.





Ruas Arsukidze e Kostava

As ruas de Mtskheta não são nada de espantar; uma mistura de pobreza e turismo de bancas e lojecas de souvenirs com ar de feira preencheu a maior parte do centro. As melhores casas foram adaptadas para alojamento ou restauração, estilo que se expande por toda a parte como uma praga do século.


A praça Svetitskhoveli, a rua Arsukidze que contorna a muralha, e sobretudo a rua Kostava, são a área urbana mais rica.

Rua Kostava ( Kostavas qucha)


Merab Kostava foi um dissidente e resistente liberal ao regime de ditadura comunista na Geórgia.



É um curto trajecto. mas bonito para passear, e podemos imaginar os tempos em que caravanas carregadas de mercadoria avançavam lentamente sobre as calçadas de pedra, polidas ao longo de séculos. A pacatez das ruas era quebrada pelos gritos guturais dos condutores, pelas campaínhas ao pescoço dos animais.  Os mercadores do oriente chegavam com incenso, sedas, pedras preciosas, especiarias; e quando a caravana parava, a multidão juntava-se em volta.

Casa típica na Arsukidze, na esquina junto à Praça. Tijolo e madeira são os materiais tradicionais.

Flowers Corner, flores e café.


Hotel Bagineti, na rua Arsukidze

O Museu-Reserva Arqueológico Didi Mtskheta 

Num antigo cinema (!) restaurado para o efeito foi instalado um Museu didático com o espólio das escavações arqueológicas da região.  


O Museu exibe achados arqueológicos que datam desde o 4º milénio AC , como utensílios agrícolas, até aos tempos da fundação do Reino da Ibéria.


Miniaturas de Veados da necrópole de  Satovle - Nabagrebi, séc VIII-VII AC.



Cavalo com rodas, brinquedo dos séc. XIV-XIII  AC

Conjunto de escrita, séc. III-IV

Nove musas decoram o fundo da caixa. O vaso de tinta estava fixo na tampa.

Fecho em ouro de Armaziskhevi, séc. III. 


Frasco de especiarias, do túmulo de Avchaliskari, séc IV-V. 

O Mosteiro de Jvari (séc. VI)

No alto do monte Jvari em frente à cidade, este templo vale pela situação, como um ninho de águia. É um mosteiro do séc. VI também ligado à vida da Santa Nino.  É outro bom exemplo da arquitectura do início da Idade Média na Geórgia.

Obviamente, lugar de peregrinação.




A Geórgia é conhecida como país de mosteiros e igrejas. Pode saturar quem visita. Vou só referir mais um, próximo de Mtskheta, e também invulgarmente localizado.


O mosteiro de Shio-Mgvime


Situado numa margenm do rio Kura a 20 km de Mtskheta, este mosteiro do século VI está dedicado a Shio (S. Simeão), um dos 13 Padres Sírios (grupo de missionários que chegou à Geórgia vindo da Mesopotâmia). O nome Shio-Migvime significa 'gruta de Shio'.

O complexo inclui duas catedrais, uma fonte, casas e residências e várias caves na parede de calcário em volta, e chegou a  albergar 2000 monges.

Catedral Superior (1103-1123)


Iconostasis

São notáveis as pinturas morais na catedral superior.


A Igreja de S. João Baptista é o templo mais antigo de Shio-Mgvime.

Igreja de S João Baptista, 550-560

Mtskheta na Rota da Seda

As rotas antigas de comércio que atravessavam em Mtskheta a confluência dos dois rios, ligando o oriente ao ocidente, vinham da direcção de Baku, rodeando pelo sul as margens do Mar Cáspio.


Desde o século VI a Ibéria oferecia uma alternativa crucial às rotas das caravanas pela Pérsia, mais perigosas devido a conflitos entre o Império Bizantino e a dinastia Sassânida. Em 568, o imperador Justiniano II redirigiu os mercadores da Ásia central para uma nova rota mais a Norte, seguindo em torno do mar Cáspio até Baku, atravessando depois o Cáucaso pela passagen de Daryal em direcção ao Mar Negro, e daí em segurança para Bizâncio.

A passagem de Daryal, já conhecida de Persas, Gregos e Romanos, era na antiguidade a única rota de travessia do Cáucaso.

Era certamente uma rota mais longa e acidentada, perdia-se tempo e muitos não resistiam; mas era mais segura e lucrativa. Continuou a ser usada até 1461, quando o Império Otomano ocupou essas terras depois da queda de Constantinopla. 

No território da actual Geórgia, a Rota de Seda passaria pela região da Svanetia, pelos rios KubanTeberda Inguri e terminava em Phasis (agora  Poti) no Mar Negro. Seguindo para Norte, no vale de Uchkulan ainda existe um muro de retenção no acesso ao Nakhar pass. Passado o Cáucaso, as Caravanas desciam até Mestia, e depois subiam de novo para a aldeia histórica de Ushguli, hoje tornada uma atracção para viajantes aventureiros.

Ushguli

Tenciono em breve publicar um post dedicado as aldeias do Cáucaso georgiano.


Simpatizo muito com a Geórgia. Entalada entre a agressiva Rússia e a muçulmana Turquia, entre duas ditaduras de tradição expansionista, a Geórgia parece um enclave da Europa, pacífica, civilizada , culta e quase liberal. Desejo-lhe a melhor sorte, que se distinga sempre pela nobreza da sua humanidade, e ultrapasse os maus vizinhos sem sofrer mais ameaças.