quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Duas canções de Brahms, por Fatma Said, soprano egípcia


O ´lied' alemão não é uma das formas musicais que mais aprecio, apesar dos sublimes Vier Letzte de Strauss e dos Wesendonck de Wagner. Schubert ou Mendelssohn aborrecem-me bastante no lied. Ora Brahms compôs alguns que são de facto belas canções, leves, melodiosas, mais próximas da canção irlandesa e escocesa que também inspirou Haydn e Beethoven. 

A surpreendente soprano egípcia Fatma Said publicou agora um excelentíssimo CD com boa variedade de 'lieder', e como é habitual nela existe alguma heterodoxia interpretativa. A voz de Fatma Said está no auge, espantosa de precisão, poder e controle, conseguindo suavidade sem perda de expressão. Ainda exulto quando surge alguém vindo de outras paragens menos cultas e civilizadas que sublima a cultura europeia a este nível. Não resisto a publicar dois vídeos desse CD. Escolho Brahms, claro.

Lerchengesang (A canção da cotovia) é uma saudação à Primavera. A melhor interpretação até agora era de Dieter Fischer-Dieskau (barítono), mas Fatma Said é inexcedível.
O poema é de Karl August Candidus (tradução minha): 

Ätherische ferne Stimmen,
Der Lerchen himmlische Grüße,
Wie regt ihr mir so süße
Die Brust, ihr lieblichen Stimmen!

Ich schließe leis mein Auge,
Da ziehn Erinnerungen
In sanften Dämmerungen,
Durchweht vom Frühlingshauche.

          Etéreas vozes distantes,
          Celestes saudações das cotovias,
          Como docemente se comove
          o meu peito, vozes amáveis!

          Em silêncio fecho os olhos,
          vão passando recordações 
          de suaves entardeceres,
          Soprados pelo respirar da primavera.

Já agora, Fischer-Dieskau:

Da Untem im Tale (Ao fundo, no vale) é outra bela canção, esta de um amor sem esperança, poema de autor desconhecido.

  
Da unten im Tale läuft's Wasser so trüb,
Und i kann dir's nit sagen, i hab di so lieb.
Sprichts allweil von Lieb', sprichst allweil von Treu',
Und a bissele Falschheit is au wohl dabei!
Und wenn i dir's zehnmal sag', daß i di lieb,
Und du willst nit verstehen, muß weiter i gehn.
Für die Zeit, wo du g'liebt mi hast, dank i dir schön,
Und i wünsch', daß dir's anderswo besser mag gehn.

             Lá em baixo no vale corre a água tão turva,
             E nem te posso dizer, tanto amor sinto por ti.
             Falas sempre de amor, falas de lealdade,
             Mas há aí também alguma falsidade !
             E se te digo dez vezes que te amo,
             E se não queres compreender, devo seguir em frente.
             Pelo tempo em que me amaste, estou muito grata,
             E desejo que te corra melhor a vida noutro lugar.

Como bónus, para quem me aturou até aqui, deixo um outro lied famoso, mas de Schumann: Widmung (Dedicatória), poema apaixonado de Robert para Clara Schumann. Foi escrito para barítono, gosto mais ainda cantado por uma mezzo, mas Fatma Said é irresistível nesta última gravação: 


Outras versões admiráveis: Peter Schreier, e a minha favorita, mezzo-soprano Siân Griffiths  Fica para a próxima 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Os bonitos 'pueblos marineros' de emigração 'indiana' na ria de Ares, Galiza.


As muitas rias, altas e baixas, da Galiza são no conjunto lugares de riqueza paisagística e de património urbano que é uma imensa sorte ter por perto, embora nem sempre sejam de acesso rápido. Até as águas calmas e não-tão-frias e algumas bonitas enseadas de areia superam de longe a triste parolice nova-rica do Algarve, tanto mais que ainda se tem sossego, muito mais do que bulício. Para mim, só tem contra: a ventania, que só raramente dá tréguas, e o nevoeiro ou chuvita, demasiado frequentes .

Ao fundo da ria, Ares.

A ria de Ares é uma das menos apelativas para o turismo - acessos tortuosos, hotelaria fraquinha - mas muito popular pelas festas com comezainas, a maioria delas no Verão; e é lugar dos ' pueblos marineros ' , povoações fundadas por emigrantes de torna-viagem das Américas no início do século XX, alguns deles regressados com as finanças em alta; a arquitectura popular dos trópicos nota-se nas varandas, no colorido das casas. nas praças. Esta herança é conhecida como "Património Indiano", por serem assim conhecidos os povos das "Índias Ocidentais", neste caso Argentina, Uruguai, Cuba ou Florida. É um fenómeno bem mais vasto e valioso que o caso português das "casas de brasileiro", ou mais recentemente dos "chalés suíços".

As povoações de Ares e Redes são as mais interessantes.

Ares
É a 'sede' das comemorações anuais do Património Indianoem Agosto, que por mim evitaria a todo o custo. Mas é certamente um prazer passear pelas 'Caraíbas' poucos quilómetros a Norte de Portugal.

Plaza da Igrexa

A Igreja de San José de Ares data de 1721. A Torre do Relógio anexa tem uma cúpula cimeira em forma de pérgola. Um relógio de Sol moderno de mármore travertino foi instalado na fachada lateral.


Da Praça irradiam, frente à Igreja, a Rúa Real, Rúa os Anxos e Rúa María, onde se concentra quase todo o património 'indiano'.

A casa nº 2 , à entrada da Rúa Real

Casas irmãs Ramos Bugallo
Rúa Real, 64-66

Nos dois lados desta rua estreita alinham-se vivendas 'índianas' das décadas de transição de século XIX - XX, desde o início frente à Igreja até cerca do nº 80. Foi já após 1920 que as duas irmãs Bugallo, casadas com emigrantes em Cuba, fizeram na sua fachada estas galerías policromadas modernistas por onde a luz entra matizada.

Casa de Nicolás López Cancela
Rúa Real, 73

Vivenda familiar construída pelo emigrante Nicolás López Cancela. Destacam-se as duas galerias envidraçadas com varanda central em ferro forjado, e uma bonita sanefa corrida a decorar a cornija.


E pela rua adiante não faltam mais exemplos de varandas e galerias. Ares teve uma época áurea nas décadas anteriores a 1940, muito visível na Praza da Constitución, entre as rúas Real e os Anxos.


Rúa María

Nesta rua há várias frentes corridas de vivendas com varanda de madeira, como esta no nº 89.

No passeio marítimo junto à praia, outro invulgar edifício:

Casa de António Vilar
Rúa Fomento 2 / Av. Saavedra Meneses, 20



Antonio Vilar regressou à Galiza e decidiu converter uma fábrica de salga, de arquitectura italiana, numa moradia frente ao mar. Ficou pronta em 1884.

A "Sirena de las Mirandas", estátua em bronze, foi instalada na praia há poucos anos, frente à galeria envidraçada.

Recorda uma lenda local sobre uma sereia que vivia nos ilhéus Mirandas, na ria em frente a Ares.



Embora Ares tenha dado o nome e seja uma vila de 6 000 habitantes, o pueblo marinero mais vistoso é Redes, uma aldeia piscatória com menos de 300.

Redes


Mais pequena, parece uma aldeia para turistas quando de facto é uma vila piscatória, genuinamente 'marinera', onde a influência centro- e sul-americana ainda se faz sentir mais intensa.

Redes nasceu da ría, ainda há casas com acesso à água por escadaria; em frente, os mastros de estender redes.

O centro da vila é a Plaza do Pedregal, que se abre para a ria, pois ali se encontra o tradicional cais dos barcos de pesca.


Casa Azul , com um torreão de três pisos e cornija saliente, é a marca mais vistosa - e até excessiva - em todos os ângulos da Praça. Mas a casa mais bonita é a Casa de Concha Amado, na esquina da Av. Gaspar Rodrigues (nº 84).




É uma casa modernista de 1894, atribuída a dois arquitectos portugueses.


Toda esta praça é um regalo de arquitectura.


Há na aldeia quatro ruelas estreitas com casas 'indianas': as ruas Arriba, Media, Abaixo, Nova e Ribeira. Dessas não consegui fotografias com qualidade para mostrar... vamos deixar Redes por aqui.

Av. Gaspar Rodrigues, a abrir na Plaza do Pedregal.


domingo, 2 de fevereiro de 2025

Turner e as poeiras do Monte Tambora : o ano em que não houve Verão

- 1816, o ano em que não houve Verão -

Era o primeiro ano de paz depois de Waterloo, que acabou com as multisseculares guerras anglo-francesas e em particular as Guerras Napoleónicas, e na Europa respirava-se alívio, contava-se com um bom ano agrícola e com melhoria da vida.

A 10 de Abril de 1815, uma erupção catastrófica eclodiu no Monte Tambora na ilha de Sumbawa, Indonésia. Os últimos 1500 metros de altura do cone foram pulverizados, num rebentamento de uma dimensão descomunal, ouvido a mais de 3000 km ! Seguiu-se  um tsunami, aumentando as vítimas para mais de 10 000, soterradas ou afogadas. 

A montanha perdeu 1500 m de altura, o seu pico (imagem AI)

Pelas 19 horas a erupção atingiu o máximo, quando três plumas vulcânicas se fundiram numa só, toda a montanha parecia um jorro de fogo líquido. Para a maioria dos cientistas, terá sido a mais destrutiva erupção vulcânica desde que há registos.

450 km3 de poeiras e calhaus foram expelidos, juntamente com 60 megatoneladas de enxofre. Ao subir e espalhar-se pela atmosfera, uma densa nuvem negra provocou o obscurecimento da luz solar, e um arrefecimento global entre 5 e 8 ºC no Hemisfério Norte. Sem luz solar, a produção agrícola foi arruinada, a fome e as doenças dizimaram as populações ainda durante esse ano; mas as poeiras finas abrangeram quase todo o Hemisfério Norte, causando prolongados crepúsculos e pores-do-sol, de cor intensa entre o alaranjado e o púrpura.

Caspar David Friedrich, Two men by the sea, 1817

Logo em 1815, um nevoeiro seco persistente e avermelhado cobriu parte dos Estados Unidos; em 1816 a Europa e América do Norte sofreram geadas e nevões em Junho, Julho e Agosto. 

O fenómeno, agora denominado "inverno vulcânico", foi agravado ainda por uma anormal redução da actividade solar, atingindo um mínimo de sempre de radiação em Maio de 1816.

Weymouth Bay, 1816 , John Constable

O "ano sem verão" arruinou todas as colheitas, sucessivas e violentas monções assolaram a Índia e a China, a fome, o frio e as epidemias alastraram pelo Hemisfério Norte. O pior ano do século XIX.

Semanas passaram a meses sem que o sol aparecesse a romper, havia só chuva torrencial e trovoadas. Na Irlanda registaram-se 8 semanas de chuva sem parar.

Lord Byron, a viver na Suíça (que foi severamente atingida),  descreveu no poema apocalíptico "Darkness" esses dias em que "as galinhas recolhiam à capoeira ao meio dia e tinha que se acender as velas como se fosse meia noite" :

     I had a dream, which was not all a dream.
     The bright sun was extinguish'd, and the stars
     Did wander darkling in the eternal space,
     Rayless, and pathless, and the icy earth
     Swung blind and blackening in the moonless air;
     Morn came and went—and came, and brought no day.

                    Tive um sonho, que não foi em tudo um sonho.
                    O luminoso sol extinguiu-se, e as estrelas
                    Vageavam sombriamente no espaço eterno,
                    Não irradiavam, não tinham rumo, e a terra gelada
                    Vacilava cega e enegrecida num ar sem lua;
                    A manhã veio e foi - e veio, e não trouxe dia.

Come era de esperar, as predições de "fim do mundo" abundaram, agravadas pelo aparente apagamento do Sol, e não faltaram citações bíblicas a fundamentar essa crença.


Do Monte Tambora resta hoje uma vasta cratera, que se inunda de água da chuva formando um lago de dimensões variáveis.


O Tambora tinha 60 km de diâmetro na base, são quase 3000 km2 ! O cone expelido de 1500m de altura tem que se juntar outro tanto do interior da cratera, e tudo a somar ao jactos piroclásticos. 

Para saber mais:
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Agora talvez perguntem porque fiz este post. Acontece que este quadro de Turner (uma reprodução) é justamente o que tenho à cabeceira da cama, e sempre estranhei aquela cor alaranjada do céu e do reflexo na água. Está tudo explicado: o quadro refere-se a 1817.

Chichester Canal, ca. 1828, J.M.Turner

Boa noite!