sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Leonardo em Clos-Lucé
[em sequência da recente visita]


Em 1515, Leonardo está em Roma, onde trabalham também Miguel Ângelo (na Capela Sixtina), o jovem Rafael (nas 4 salas do Vaticano), Giorgio Vasari. Invejas, rivalidades e mau feitio iam surjindo a par com a protecção e os convites que cada um recebia dos poderosos.

Leonardo, até há pouco benquisto, sente-se posto de lado. Continua absorvido nos seus estudos anatómicos mas não obtém as encomendas e as mordomias dos outros rivais. Para mais, Juliano de Médici, seu protector, abandona Roma, e Leonardo cai em desgraça. As suas investigações científicas sobre o corpo humano não agradam à Igreja, o Papa proíbe-lhe o acesso ao hospital, impõe-lhe um criado alemão cuja missão é espiá-lo, e a antipatia e humilhação vão-se tornando crescentes e publicamente evidentes. Roma tornou-se demasiado pequena para Leonardo.

Em Bolonha, obtém o entusiasmo e a simpatia do jovem Francisco, duque de Angoulême, amante das artes e desejoso de um grande Renascimento em França, onde acaba de aceder ao trono como Francisco I. Leonardo aceita o convite daquele que será o seu patrono e amigo até ao fim da vida; então com 64 anos, e com a Gioconda e os desenhos escondidos numa sacola, Leonardo segue por Forença, Milão e Turim, e atravessa de mula os Alpes pelo mosteiro de Sacra di San Michele.


Desce depois o vale de Aosta ladeando o Mont Blanc, até à aldeia de Saint-Gervais onde descansa uns dias, a desenhar esboços de todo o espantoso panorama, o azul entre os picos brancos, os glaciares, as águas em turbilhão encosta abaixo, as avalanches.

Parece então a Leonardo que o fim do mundo virá de uma inundação imensa:

'(...)os campos submersos sob ondas de mesas, leitos, canoas, sobre os quais homens e mulheres apinhados gritam, espavoridos pelo tornado furioso das vagas e pelos cadáveres dos afogados que os rodeiam.'

Mas à medida que segue descendo os Alpes a caminho de Lyon, Leonardo fica maravihado  com a França, deslumbrado com os três vales - Rhône , Loire e Cher - sob o primeiro sol da Primavera.


Os castelos e as fachadas de calcário do casario, com os reflexos nas águas calmas do rio, dão-lhe exactamente o que ele precisava - paz e inspiração.


Chega no outono de 1516 ao castelo de Amboise, onde o espera Francisco I.


No terraço perfumado de laranjeiras, com vista magnífica sobre a vila e o rio, percebe que será aqui o resto da sua vida. Mais feliz fica ao notar que à sua volta muitos falam italiano - são artistas e artesãos que cada vez mais afluem à corte de França.

Francisco I oferece-lhe uma mansão acastelada. de tijolo rosa e bela tufa calcária branca do Loire, com um jardim enorme, e toda a liberdade para criar:

Le Château de Clos-Lucé.

Ilustração de Plilippe Lorin
Da galeria renascentista, a corte e as damas assistiam às festas dadas no pátio.

E Leonardo é requisitado para encenar grandes festas, muito ao gosto do novo Rei. Torneios, animais selvagens, autómatos, bailes, tudo com efeitos especiais de som e luz.

Uma das festas encenadas por Leonardo, em que um mecanismo escondido faz mover o Sol e os planetas sobre a abóbada celeste,  é assim descrita:

O pátio de lajes estava coberto com pano da côr azul do céu. Sobre o pano, os principais astros – o Sol de um lado, a Lua do outro, autêntica maravilha de se ver. Marte Júpiter e Saturno, por ordem, dispostos com os doze signos celestiais. À volta do pátio, uma colunata circular também ela enfeitada com o mesmo pano azul e com as estrelas (...) Havia quatrocentos candelabros, tão luminosos que pareciam expulsar a noite (…)


No então chamado 'Manoir de Cloux', Leonardo sente-se feliz e muito bem pago – e logo recomeça a trabalhar intensamente em vários projectos, estudos sobre hidrografia da região, um plano de controle do curso do Loire e afluentes com sistemas de éclusas, secagem de pântanos, construção de canais e moínhos…


Um dos seus projectos mais loucos era o castelo de Romorantin, vila próxima de Amboise: Leonardo desenha uma cidade-palácio, ilha-castelo, uma nova capital do reino, equipada com engenhosos mecanismos nunca vistos.



Seria como um castelo cintilante emergindo da água por um sistema de roldanas e alavancas… nunca chegou a ser iniciado (os terrenos do rio Sauldre eram demasiado insalubres), mas foi talvez a mais grandiosa utopia do mestre. Depois da sua morte, algumas das ideias influenciaram o plano de construção do Castelo de Chambord.

O Clos-Lucé é um edifício do Séc. XV, renascentista, rodeado de verdura. A vista para Amboise, ali ao lado, é soberba, salientando-se a elevada capela de St. Hubert.

Para tratar da casa e da cozinha, e dos muitos gatos que por ali andam, é contratada a Sra. Mathurine, que cuida das refeições vegetarianas como ele exige. Leonardo adora os gatos, que andam pela casa e jardins, observa-os, desenha-os:
O mais insignificante destes felinos é em si mesmo uma obra prima.



No Inverno, aquece as mãos na monumental chaminé, ornada com as armas de França. E se for à janela, apoiado nos cotovelos, começa a ver o desenho do palácio real de Amboise.



No Verão, desce aos jardins onde plantou muitas das árvores que lá se encontram, passeia até a beira do Amasse, um ribeiro que atravessa o parque de Clos-Lucé.


Entretanto Leonardo não pára. Convencido de que é possível fazer uma máquina voadora, continua a estudar o voo dos pássaros, enche páginas e páginas com esboços, rascunhos.




Recebe também numerosas visitas. E em primeiro lugar, a do Rei, que não cessa de maravilhar com a descrição de como um dia o homem voará nos céus, ou navegará sob as águas.  Fala-lhe de Alexandre e Aristóteles, e Francisco I escuta como um filho escuta uma lição do pai, com afecto e emoção. Recebe também a irmã do Rei, Marguerite de Navarre, também grande figura humanista do Renascimento em França.

Viveu assim os últimos 3 anos. Escreveu mais de 10 000 páginas de notas e desenhos, sem ordem, ao sabor da imaginação – o escafandro, a imbricação das penas nas asas dos pássaros, o carro de assalto, a ponte giratória, muitos desses desenhos actualmente espalhados pelos museus da Europa. Mas a maioria não foi encontrada; talvez devido aos empréstimos e pilhagens que foram ocorrendo depois da morte de Leonardo, dois terços da obra desenhada e pintada continuam desaparecidos.




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Desenhos:
http://pasalavida.org/leonardo-da-vinci/arquitectura-y-planificacion/

Documentos consultados:
Carlo Pedretti, Léonard de Vinci au Chateau do Clos Lucé (pdf)
Gonzague Saint BrisSur les pas de Léonard de Vinci,  Presses de la Renaissance, 2006

6 comentários:

Gi disse...

Adorei este post e fiquei cheia de vontade de visitar o Manoir. Obrigada, Mário.

Mário R. Gonçalves disse...

Já esperava que gostasse, Gi, :)

Um dia que vá, note que Amboise também vale bem a visita.

REACTOR disse...

Caro Mário Gonçalves, queria entrar em contacto consigo por causa de uma exposição que estou a preparar. Não encontrei o seu e-mail, por isso agradeço se fizer a amabilidade de me contactar.

Cumprimentos

José Bártolo
bartolo.jose@gmail.com

Mário R. Gonçalves disse...

Caro José Bártolo,

já lhe reposdi pelo mail que está indicado no meu perfil do Blogger.

Obrigado.

Paulo disse...

Também gostei muito.
Já pensou em reviver a viagem de Leonardo?

Mário R. Gonçalves disse...

Paulo, obrigado,

em pensamento, sim, já pensei, mas a carne é fraca :(