quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Ulaan Baatar, ou o mistério das imparáveis visitas mongóis


É uma coisa incrível, estranha, inexplicável: porque tenho, a acreditar nas estatisticas do blogger, visitas continuadas de um sítio tão remoto e imprevisível como Ulaan Baatar (ou Ulan Bator), capital da Mongólia ? Não percebo. Está sempre presente no mapa de visitas.

Muitos outros locais remotos e surpreendentes surgem e desaparecem, fazem visitas efémeras - que aliás me dão muito gosto. Mas Ulaan Baatar veio para ficar, anda sempre aqui metido, sem um intervalinho que seja de sumiço. Terei muitos seguidores por lá ? Mas afinal que terra é essa ?

Pretexto para mais uma viagem virtual no Livro !

Bonita 'Yurta' no centro de Ulaan Baatar.

Gandan, templo budista, a religião dominante. Ainda há vários na cidade, alguns entalados entre arranha-céus.

A minha perplexidade levou-me a fazer umas procuras - deixo aqui os resultados.

*
Trata-se de uma cidade de mais de um milhão de habitantes, o que já espanta no que pode bem ser a capital de maior interioridade do mundo, longe do mar como nenhuma outra. Com área de 1.564.115 km2, a Mongólia é um país enorme, quase do tamanho da Índia. Contudo não chega aos três milhões de habitantes, mais de um terço dos quais vive na capital - nada a ver com a capital imperial do tempo de Gengis Khan, atenção.


A História mongol foi épica e grandiosa . O fascinante Império Mongol foi tão extenso como o Romano, e abarcou, desde o Báltico e Danúbio até ao Pacífico, uma imensa faixa de território diverso em povos e civilizações. Não consigo sequer imaginar como foi possível, durante a nossa Idade Média, uma civilização tão pujante às portas da Europa. Uma Pax Mongolica garantiu no séc. XIII rotas de intenso comércio transcontinental pela Eurásia. Como era de esperar, após o apogeu no final do século, o Império acabou por se desmoronar e terminou em 1368.
Uma visão animada da expansão aqui:
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Mongol_Empire_map.gif

Essa glória passada sob o domínio da dinastia Khan ainda se esvaneceu mais tragicamente do que a nossa, portuguesa, vã glória - nada restou senão um território quase deserto no meio de nenhures, longe de tudo, pobre e atrasado, 'entalado' debaixo da Sibéria, com um povo nómada de pastores e umas poucas povoações num isolamento que só as viagens aéreas e o trans-siberiano ajudavam a minorar.

Estepe, deserto do Gobi e montanhas - um território ingrato.

E eis que, subitamente, depois de se emancipar da Rússia, surge um rápido enriquecimento com a exploração intensa de carvão, gás e minérios. Imensos depósitos de cobre, chumbo, muito ouro, tungsténio, urânio até, que o regime soviético aliás conhecia e guardara em segredo !

Mina a céu aberto, uma entre muitas.

Agora, quem lucra é a Rio Tinto, sobretudo, alguns personagens locais, muito, e a balança comercial, o que sobra. E a Mongólia parece outra coisa.

Entrada na capital. Igual a qualquer europeia.

A praça Sukhabatar, centro cívico da capital. Ao centro sob a colunata, uma enorme estátua de Gengis Khan, o ícone venerado. 

Ícone antigo

Ícone novo

Se a terra não dá para cultivo nem pasto, ao menos que dê energia e calhaus de valor em bolsa - uma preciosidade em tempos que correm. É que dos pastos têm dado cabo as cabras dos rebanhos criados no planalto pela famosa cachemira do Altai, que apesar da crise, continua famosa e relevante nas exportações; como o nosso vinho do Porto, é um produto único e requintado.


'Altai Cashmere':
http://mcashmere.com/brands/altai-cashmere.html

Agora, a Mongólia de fértis subsolos, esburacada por todos os lados, deixa rapidamente de ser nómada e viver em yurtas, e vai de se pôr a construir arranha-céus, aeroportos, centros comerciais, ruas pedonais com fontes e esplanadas, tudo à novo-rico. Lojas de marca. Hotéis de muito luxo. Até os tristes blocos pré-fabricados de cinco andares da era soviética são reconvertidos, e com uma colunas gregas à porta , abre um cabeleireiro, um pub, uma loja de telemóveis. Nada que nos seja estranho: capitalismo entusiástico.

A Avenida da Paz, a maior avenida da Mongólia, centraliza quase todo o comércio e é um inferno de trânsito e poluição.
Hotel em Ulaan Baatar

Hotel em Karakorum, a antiga capital do Grande Império Khan.


Surreal.

Os dois mundos convivem, evidentemente, mal, e a Mongólia é um dos países mais desiguais e mais poluídos do planeta...

'Ger' (acampamento de yurtas) num subúrbio pobre. Com carro à porta, note-se.

Duas cidades.

O pior é o Inverno, onde se pode ter que sobreviver a -50 º C . As yurtas são aquecidas com fogareiros de carvão, barato, e o fumo é tanto que torna insuportável o ar da cidade - nem se vê o outro lado da rua.

*
Não desvendei o mistério, mas fiquei a saber do "milagre económico" mongol. Lembra outros (celtas, etc...). Desejo o melhor aos Ulaanbaatarenses - economia em crescimento, nível de vida em progresso, longevidade, qualificação, acesso à cultura - mas por favor não se endividem de mais, pedir emprestado é caminho para uma agonia certa. Diz quem sabe.

Yurta pós-moderna.


E sejam sempre bem vindos, caros visitantes mongóis, desde as vossas yurtas ou dos lofts de 15º andar com vista.





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Só mais uns dados:
Crescimento do PIB 17.3%  !!! (2011) 
PIB per capita $ 5 000 ( Portugal: $ 23 000 )

Fotos: Panoramio, Skyscrapercity

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Uma programação em baixo, :(((


Eu sei que, segundo certos parâmetros, sofro de elitismo cultural eurocêntrico :D

Mas será suposto que uma Casa da Música, sala de acústica cuidada e com orquestra sinfónica residente, público habituado a música clássica, tenha na sua programação coisas que podiam muito bem ter lugar em qualquer sala popular tipo Coliseu ?

O ano de 2014 revela-se paupérrimo de programação. Basta dizer que o "tema" é o oriente, e temos o Cambodja, a China e o Japão como principais fontes musicais da agenda de concertos.

Vejamos um apanhado (preparem um lenço para as lágrimas de riso):

- Ensemble de Gamelão, dirigido por Jorge Queijo e Maria Mónica
(corpo de percussões)
- Kimuco Tsumori, de Osaka, canta Fados com alma japonesa.
- Gisela João, de Barcelos, canta Fado também, tendo-se afirmado como grande fadista nas casas do S. Vinho, Tasca da Bela e Mesa de Frades.
- Miguel Poveda , grande nome do Flamenco, Prémio Lampara Minera.
- Mallu Magalhães vem promover o recente CD Pitanga, com preciosa colaboração de Marcelo Camelo.

E isto, só em Janeiro ! Que maravilha ! Depois vem mais, muito mais ( e estou a saltar uns quantos):

- Márcia, que se estreou com  e tem mais de um milhão de visualizações no youtube.
- Banda Sinfónica Portuguesa, com a The Queen Symphony de Tolga Kashif, homenagem à incontornável banda rock Queen. E outros programas assim aliciantes noutras datas !
- Banda Militar do Porto, dir. Capitão Alexandre Coelho, que confere brilhantismo às cerimónias militares
- Goran Bregovic, da Bósnia, inspira-se em bandas de metais ciganas, polifonias búlgaras, guitarra eléctrica , percussão, cordas e cantores ortodoxos (uf !)
- Ballet Real do Cambodja, coreografia criada por Sua Alteza Real a Princesa Norodom Bhuppa Dévi, gestos graciosos e guarda-roupa colorido.
- Teresinha Landeiro, de Azeitão, estreou-se nos fados na Casa de Linhares, e obteve o 2º lugar no concurso "Fado dos Bairros".

Longe de mim insinuar que o programa de 2014 é só Fado, Folclore e Bandas. Mas o problema maior é que folheio o grosso livro de programação e não encontro nenhum Ponto Alto !  A não ser que nos contentemos com os habituais recitais de Sokolov e Lugansky, ou o Hespèrion XXI de aqui ao lado. Masaaki Suzuki e o Bach Collegium, daqui a uma ano (!), foi a única reserva que fiz com convicção.

Ah, e o concerto de jazz de Wayne Shorter.

Que diriam os lisboetas de uma programação assim na Gulbenkian ?
Acho que havia mortes.

domingo, 24 de novembro de 2013

Sol poente às 5, lareira acesa





Os melhores dias do outono. Castanhas, bravo-de-esmolfe, diospiros, sabe tudo bem depois de aproveitar o quentinho do sol da hora de almoço, sempre baixo. Um bom domingo.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Dia de Santa Cecília
'Keep here your watch and never part'


Purcell, Dido's lament, sublime
Teodor Currentzis dirige a  Anima Aeterna



Estarão na Gulbenkian em 2014.

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A não perder: o Paulo tem hoje um post inatingível, fora de competição... :)

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Invenção de Leonardo da VInci ouvida pela primeira vez



Não resisto ! Bem sei que isto é quase só copy-paste, mas a tentação é forte.


A "viola-organista" desenhada por Leonardo há mais de 500 anos (1488-89) foi agora construída e pela primeira vez tocada pelo fabricante polaco Slawomir Zubrzycki. Quatro rodas em torno das quais se enrola crina de cavalo "tocam" as cordas metálicas de uma espécie de cravo, não através da percussão com martelinhos, como no cravo, mas esfregando, tal como um arco nas cordas da viola. O tocador acciona a rotação das rodas com os pés.



Zubrzycki demorou três anos (5000 horas) a dar vida ao instrumento, a partir de um esboço no Codex Atlanticus de Da Vinci, doze volumes de manuscritos e desenhos de tudo e mais alguma coisa - armas, máquinas voadoras, corpo humano...

Zubrzycki inscreveu na madeira uma citação de Hildegarde von Bingen:

"Santos profetas e estudiosos imersos no oceano das artes humanas e divinas, conceberam uma multitude de instrumentos para deliciar a alma"

Entrevista em polaco (vale pelas imagens e sons):

domingo, 17 de novembro de 2013

Um texto bucólico de Yourcenar sobre os palácios do Loire


Li este texto de Marguerite Yourcenar num cartaz afixado em Chenonceau, quando recentemente visitei o castelo. Depois de todo o fausto, leito do rei fulano, boudoir da princesa de tal, sala de música da côrte, etc, é bom saber pôr as coisas no seu lugar.

"Changeons de perspective: laissons là ces figures par trop connues, ces silhouettes de la lanterne magique de l'Histoire de France. Donnons une pensée à d'autres occupants successifs du château, habitants anonymes qui surpassèrent en nombre ceux que nous connaissons ou croyons connaître. 


Eloignons-nous de quelques pas : pensons aux innombrables générations d'oiseaux qui ont tourbillonné autour de ces murailles, à l'architecture savante des nids, aux génélogies royales des bêtes de la forêt et à leurs tanières ou à leurs abris sans faste, à leur vie cachée, à leur mort presque toujours tragique, et si souvent due aux attentats de l´homme.


Un pas de plus le long des allées: songeons à la grande race des arbres dont les diverses essences se sont succédé ou supplantées á cette place, et comparé à l'antiquité de laquelle c'est peu de chose que quatre ou cinq cents ans. 

Un pas encore plus loin de toute préoccupation humaine, et voici l'eau de la rivière, l'eau plus ancienne et plus neuve que toutes les formes, et qui depuis des siècles lave les défroques de l'histoire. 



La visite de vieilles demeures peut mener à des points de vue auxquels on ne s'attendait pas." 

Marguerite Yourcenar, 1962

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Sonhadores de sonhos, como Elgar e Janet Baker


'The Music Makers', de Elgar, ode para contralto ou mezzo-soprano, côro e orquestra, Op. 69 .

Estreou no Birmingham Festival em Outubro de 1912, sendo a orquestra dirigida pelo compositor com Muriel Foster na voz solista. O texto é o poema 'Ode' de Arthur O'Shaughnessy, de 1874, que Elgar tinha começado a musicar em 1903, não por comissão, mas por se sentir muito retratado no poema, um lamento pela solidão do artista nos seus sonhos criadores:

We are the music makers,
And we are the dreamers of dreams,
Wandering by lone sea-breakers, 
And sitting by desolate streams..


Em 1912, Elgar estava em profunda depressão, em parte afectado pela tragédia do Titanic, em parte por sofrida solidão. Escrevia então, "eu no fundo sou ainda a criança sonhadora que se pode encontrar entre os juncos do rio Severn, com uma folha de papel, a tentar descrever os sons e suspirando por quaquer coisa de grandioso. Continuo à espera disso." E na verdade respira ao longo da peça uma "saudade" romântica do humanamente grandioso.

A música não é inteiramente nova - há excertos de outras obras, como o Nimrod das variações Enigma. É este o trecho que sugiro aqui:

They had no vision amazing
Of the goodly house they are raising;
They had no divine foreshowing
Of the land to which they are going:

But on one man's soul it hath broken,
A light that doth not depart;
And his look, or a word he hath spoken,
Wrought flame in another man's heart.


Janet Baker numa gravação de 1966

Mais recente: Jean Rigby, 1994


P.S. Faleceu hoje John Tavener, compositor, 1944 – 2013. Menos música... continuemos a ouvi-lo aqui

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Maria João Pires e António Meneses, Wigmore Hall Recital


Um recital perfeito, disponível no spotify :


https://play.spotify.com/album/6xjItUM9I17Y9ZbdAW9Zon

E para se "ver", há esta gravação em Roma:
Sonata Arpeggione de Schubert


Há magia, como sempre, nestas mãos, nos silêncios, na delicadeza.

domingo, 3 de novembro de 2013

Morte e ressurreição de Anarulunguaq


A Quinta Expedição 'Thule' (1921-1924) de Knud Ramussen ao ártico americano foi a mais ambiciosa, reconhecendo em toda a extensão o território da Passagem do Noroeste, em trenó puxado por cães.


Ao acabar o relato, no seu livro "Across Arctic America", Knud Rasmussen leva consigo os companheiros de aventura, Anarulunguaq e Miteq, para Nova Iorque. Eles, que tinham vivido toda a vida entre um continente de gelo e o mar, conheciam um mundo a duas dimensões, onde a preocupação permanente era conseguir caçar a próxima refeição, e o ritmo de vida lento como o de quem nada mais tem para fazer depois de se alimentar, o mundo imenso à volta feito de tapete branco ou águas do mar.


E o choque não podia ser maior.

'I stood on the roof of a skyscraper looking out over the stony desert of New York. (...) Anarulunguaq stood beside me.

"Ah", sighed Anarulunguaq, "and we used to think nature was the greatest and most wonderful of all ! Yet here we are among mountains and great gulfs and precipices, all made by the work of human hands.(...) Nature is great; but are not men greater ? Those tiny beings we can see down there far below, hurrying this way and that, they live among these stone walls; on a great plain of stones made with hands. Stone and stone and stone. There is no game to be seen anywhere, and yet they manage to live and find the daily food.
Have they then learned of the animals, since they can dig down under the earth like marmots, hang in the air like spiders, fly like the birds and dive under water like the fishes; seemingly masters of all we struggled against ourselves ?



I see things more than my mind can grasp; and the only way to save oneself from madness is to suppose that we have all died suddenly before we knew, and that this is part of another life.

Nature is great; but man is greater still."


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Quantos poderão hoje passar por uma experiência destas ?