quarta-feira, 9 de abril de 2014
Durrell, do 'Quarteto' ( I - Justine)
A minha leitura do Quarteto de Alexandria vai avançando a custo, entre páginas brilhantes e outras completamente falhadas, já cheguei ao ponto de passar à frente em diagonal longos diálogos insuportáveis de irrelevância em escrita de amador. As obsessões de Durrell pela sarjeta e por um libertino mau gosto também cansam. Mas quando se trata de descrições, consegue pérolas de escrita como esta descrição do Khamseen, a tempestade de areia:
« No decurso dessa segunda Primavera o Khamsin foi o pior de que eu guardo memória. Antes do poente, o céu do deserto tornava-se castanho, depois ia escurecendo lentamente, entumecia-se como uma face esbofeteada e fazia explodir as franjas das nuvens, gigantescas oitavas de almagre que se acumulavam sobre o delta como cortinas de cinzas debaixo de um vulcão. A cidade contrai-se como preparando-se para enfrentar uma tempestade. Algumas rajadas de vento trazendo esparsas gotas de chuva são as guardas avançadas da obscuridade que apaga o céu. E, impalpável, invisível, na obscuridade das alcovas com as persianas fechadas, a areia invade tudo, aparece, como por magia, nas roupas há muito fechadas nos armários, insinua-se entre as páginas dos livros, deposita-se sobre os quadros e sobre as colheres. Nas fechaduras e debaixo das unhas. O ar soluça, vibra, seca as mucosas e injecta os olhos de sangue. Nuvens de sangue seco percorrem as ruas como profecias; a areia cai sobre o mar como a poeira sobre os caracóis de uma velha cabeleira suja. As canetas de tinta permanente entopem, os lábios estalam e as lâminas das persianas cobrem-se de uma fina película branca como se fosse neve fresca. Os faluchos fantasmagóricos que deslizam no canal são tripulados por lobisomens com a cabeça envolvida em trapos. De vez em quando, uma rabanada de vento estala como uma chicotada, de cima para baixo, faz turbilhonar toda a cidade, e tem-se a impressão de que as árvores, os minaretes, os monumentos e as pessoas são arrastados no derradeiro turbilhão de um tomado gigantesco, levados pelas areias do deserto de onde provieram, regressando ao imenso nada esculpido das planícies infinitas das dunas ...»
«That second spring the khamseen was worse than I have ever known it before or since. Before sunrise the skies of the desert turned brown as buckram, and then slowly darkened, swelling like a bruise and at last releasing the outlines of cloud, giant octaves of ochre which massed up from the Delta like the drift of ashes under a volcano. The city has shuttered itself tightly, as if against a gale. A few gusts of air and a thin sour rain are the forerunners of the darkness which blots out the light of the sky. And now unseen in the darkness of shuttered rooms the sand is invading everything, appearing as if by magic in clothes long locked away, books, pictures and teaspoons. In the locks of doors, beneath fingernails. The harsh sobbing air dries the membranes of throats and noses, and makes eyes raw with the configurations of conjunctivitis. Clouds of dried blood walk the streets like prophecies; the sand is settling into the sea like powder into the curls of a stale wig. Choked fountain-pens, dry lips - and along the slats of the Venetian shutters thin white drifts as of young snow. The ghostly feluccas passing along the canal are crewed by ghouls with wrapped heads. From time to time a cracked wind arrives from directly above and stirs the whole city round and round so that one has the illusion that everything - trees, minarets, monuments and people have been caught in the final eddy of some great whirlpool and will pour softly back at last into the desert from which they rose, reverting once more to the anonymous wave-sculptured floor of dunes...»
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