Lettura di un'onda é um dos contos do livrinho Palomar (Einaudi, 1983) onde Italo Calvino filosofa sobre o homem e a vida moderna, em particular as coisas mais desagradáveis - solidão, excesso de trabalho, ruído, convenções, depressão ... mas Calvino escreve na forma de parábolas, com uma fantasia e riqueza de texto irresistíveis. Com esta lettura identifico-me bastante.
Mais uma vez, publico a minha tradução (encontro defeitos na tradução corrente, da Teorema), até para este post ter alguma coisa de meu.
Leitura de uma onda
O mar está levemente encrespado e pequenas ondas vêm quebrar na praia arenosa. O senhor Palomar está de pé na areia e observa uma onda. Não que esteja absorto na contemplação das ondas. Não está absorto, porque sabe bem o que faz: quer observar uma onda, e observa-a. Não está contemplando, porque para a contemplação é preciso um temperamento adequado, um estado de ânimo adequado e um concurso de circunstâncias externas adequado: e embora o senhor Palomar nada tenha contra a contemplação em princípio, o facto é que nenhuma daquelas três condições se verifica neste caso. Em suma, não são "as ondas" que ele pretende observar, mas uma onda única e simples: no intuito de evitar as sensações vagas, ele fixa previamente para cada um de seus actos um objectivo limitado e preciso.
O senhor Palomar vê uma onda despontar ao longe, crescer, aproximar-se, mudar de forma e de côr, enrolar-se sobre si mesma, quebrar-se, desvanecer, refluir. A essa altura poderia convencer-se de ter levado a cabo a operação que se tinha proposto e ir-se embora. Contudo, isolar uma onda da que se lhe segue de imediato e que parece empurrá-la ou às vezes juntar-se a ela e subjugá-la é algo muito difícil, assim como separá-la da onda que a precede e que parece arrastá-la em direcção à praia, ou então talvez voltar-se contra ela como se quisesse detê-la. Se considerarmos ainda cada onda no sentido de amplitude, paralelamente à costa, será difícil estabelecer até onde a frente que avança se estende continuamente e onde se separa e se segmenta em ondas independentes, distintas na velocidade, na forma, na força, na direcção.
Em suma, não se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos complexos que concorrem para formá-la e aqueles igualmente complexos a que ela dá lugar. Estes aspectos variam continuamente, pelo que cada onda é diferente de outra onda; mas é também verdade que uma onda é igual a uma outra onda, mesmo quando não imediatamente contígua ou sucessiva; enfim, são formas e sequências que se repetem, ainda que distribuídas de modo irregular no espaço e no tempo. Como o que o senhor Palomar pretende fazer neste momento é simplesmente ver uma onda, ou seja, colher todas as suas componentes simultâneas sem descurar nenhuma, o seu olhar irá deter-se sobre o movimento da água que bate na praia, a fim de poder registar aspectos que não tinha captado de início; logo que se dê conta de que as imagens se repetem, saberá que já viu tudo o que queria ver e poderá ir-se embora.
Homem nervoso que vive num mundo frenético e congestionado, o senhor Palomar tende a reduzir suas próprias relações com o mundo externo e para defender-se da neurastenia geral procura tanto quanto pode manter as suas sensações sob controle.
A crista da onda ao avançar em frente ergue-se num determinado ponto mais do que noutros e é ali que começa preguear-se de branco. Se isto acontece a certa distância da praia, a espuma tem tempo de enrolar-se sobre si mesma e desaparecer de novo como que tragada e no mesmo momento tornar a invadir tudo, mas desta vez surgindo de baixo, como um tapete branco que soergue a baínha para acolher a onda que chega. Mas, quando se espera que a onda role sobre o tapete, damo-nos conta de que já não há mais onda mas apenas o tapete, e mesmo esse rapidamente desaparece, torna-se uma cintilação da areia banhada que se retira veloz, como se a rejeitá-lo houvesse uma expansão da areia seca e opaca avançando a sua fronteira ondulada.
Ao mesmo tempo é preciso considerar as reentrâncias da frente, quando a onda se divide em duas alas, uma que tende em direcção à praia da direita para a esquerda e outra da esquerda para a direita, e o ponto de partida ou de chegada dessa divergência ou convergência é aquela ponta em negativo, que segue o avançar das alas mas sempre mantendo-se um pouco atrás e sujeita à sua sobreposição alternada, até que seja alcançada por uma outra onda mais forte embora também esta com o mesmo problema de divergência-convergência, e depois por outra ainda mais forte que resolve o enovelado rebentando com ele .
Tomando como modelo o desenho das ondas, a praia avança na água pontas apenas esboçadas que se prolongam em bancos de areia submersos, como as correntes os formam e desfazem a cada maré. Foi uma dessas baixas línguas de areia que o senhor Palomar escolheu como ponto de observação, porque as ondas batem obliquamente de um lado e do outro, e ao cavalgarem a superfície semi-submersa vão encontrar-se com as que chegam do outro lado. Assim, para compreender como é feita uma onda é necessário ter-se em conta esse impulso em direcções opostas, que em certa medida se contrabalançam e em certa medida se somam, e produzem uma rebentação geral de todos os impulsos e contra-impulsos no habitual espalhar da espuma.
O senhor Palomar está procurando agora limitar seu campo de observação; se ele tiver presente um quadrado de, digamos, dez metros de praia por dez metros de mar, pode completar um inventário de todos os movimentos de ondas que ali se repetem com frequência variada dentro de um dado intervalo de tempo. A dificuldade está em fixar os limites desse quadrado, porque se, por exemplo, ele considera como o lado mais distante de si a linha elevada de uma onda que avança, essa linha aproximando-se e erguendo-se esconde da sua vista tudo o que está atrás; e eis que o espaço considerado para exame se inverte e ao mesmo tempo se comprime.
Contudo, o senhor Palomar não perde o ânimo e em cada momento acredita ter conseguido ver tudo o que poderia ver de seu ponto de observação, mas depois sucede sempre alguma coisa que não tinha levado em conta. Se não fosse por esta sua impaciência de chegar a um resultado completo e definitivo da sua operação visiva, a observação das ondas seria para ele um exercício muito repousante e poderia salvá-lo da neurastenia, do infarto e da úlcera gástrica. E talvez pudesse ser a chave para a padronização da complexidade do mundo reduzindo-a ao mecanismo mais simples.
Mas todas as tentativas de definir este modelo devem levar em consideração uma onda longa que ocorre em direcção perpendicular à rebentação e paralela à costa, fazendo deslizar uma crista contínua e apenas aflorante. A corrida das ondas que se eriçam para a praia não perturba o impulso uniforme dessa crista compacta que as corta em ângulo recto, e não se sabe para onde vai nem de onde vem. Se calhar é um fio de vento de nascente que move a superfície do mar em sentido transversal ao impulso profundo que vem das massas de água do largo, mas essa onda que nasce do ar recolhe de passagem também as forças oblíquas que nascem da água, forças que desvia e reencaminha no seu sentido levando-as consigo. Assim vai continuando a crescer e a ganhar força para que o encontrar-se com as ondas contrárias não a esmoreça pouco a pouco até fazê-la desaparecer, ou então a torça até fazê-la confundir-se com uma de tantas dinastias de ondas oblíquas, e a bater na praia com as outras.
Dirigir a atenção para um aspecto fá-lo saltar para o primeiro plano e invadir o quadro, como em certos desenhos que basta fechar os olhos e ao reabri-los a perspectiva já mudou. Além do mais nesse entrecruzar-se de cristas diversamente orientadas o desenho de conjunto torna-se fragmentado em painéis que afloram e se desvanecem. Acresce que o refluxo de cada onda também possui uma força que se opõe às ondas que lhe sucedem. E se se concentra a atenção nesses impulsos retroactivos parece que o verdadeiro movimento é aquele que parte da praia e vai em direcção ao largo.
Será que o verdadeiro resultado a que o senhor Palomar está prestes a chegar é o de fazer com que as ondas corram em sentido oposto, de virar o tempo do avesso, de discernir a verdadeira substância do mundo para além dos hábitos sensoriais e mentais? Não, ele chega quase a experimentar um leve sentido de reviravolta, nada mais. A obstinação que impulsiona as ondas em direcção à costa é partida ganha: de facto, elas estão bastante maiores. Estaria o vento a mudar ? É pena que a imagem que o senhor Palomar conseguiu minuciosamente montar agora se interrompa, se esmigalhe e se disperse. Só se ele conseguir ter presentes todos os aspectos juntos poderá iniciar a segunda fase da operação: estender esse conhecimento ao universo inteiro.
Bastaria não perder a paciência, coisa que não tarda a acontecer. O senhor Palomar afasta-se ao longo da praia, com os nervos tensos como tinha chegado e ainda mais inseguro de tudo.
Italo Calvino, 1983
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