domingo, 30 de outubro de 2016
Sinos a faíscar pela liberdade, obra-prima de Dylan
(com 'tradução' )
Chimes of Freedom
Bob Dylan
Far between sundown's finish an' midnight's broken toll
We ducked inside the doorway, thunder crashing
As majestic bells of bolts struck shadows in the sounds
Seeming to be the chimes of freedom flashing
Flashing for the warriors whose strength is not to fight
Flashing for the refugees on the unarmed road of flight
An' for each an' ev'ry underdog soldier in the night
An' we gazed upon the chimes of freedom flashing
Through the city's melted furnace, unexpectedly we watched
With faces hidden as the walls were tightening
As the echo of the wedding bells before the blowin' rain
Dissolved into the bells of the lightning
Tolling for the rebel, tolling for the rake
Tolling for the luckless, the abandoned an' forsakened
Tolling for the outcast, burnin' constantly at stake
An' we gazed upon the chimes of freedom flashing
Through the mad mystic hammering of the wild ripping hail
The sky cracked its poems in naked wonder
That the clinging of the church bells blew far into the breeze
Leaving only bells of lightning and its thunder
Striking for the gentle, striking for the kind
Striking for the guardians and protectors of the mind
An' the poet and the painter far behind his rightful time
An' we gazed upon the chimes of freedom flashing
In the wild cathedral evening the rain unraveled tales
For the disrobed faceless forms of no position
Tolling for the tongues with no place to bring their thoughts
All down in taken-for-granted situations
Tolling for the deaf an' blind, tolling for the mute
For the mistreated, mateless mother, the mistitled prostitute
For the misdemeanor outlaw, chaineded an' cheated by pursuit
An' we gazed upon the chimes of freedom flashing
Even though a cloud's white curtain in a far-off corner flared
An' the hypnotic splattered mist was slowly lifting
Electric light still struck like arrows, fired but for the ones
Condemned to drift or else be kept from drifting
Tolling for the searching ones, on their speechless, seeking trail
For the lonesome-hearted lovers with too personal a tale
An' for each unharmful, gentle soul misplaced inside a jail
An' we gazed upon the chimes of freedom flashing
Starry-eyed an' laughing as I recall when we were caught
Trapped by no track of hours for they hanged suspended
As we listened one last time an' we watched with one last look
Spellbound an' swallowed 'til the tolling ended
Tolling for the aching ones whose wounds cannot be nursed
For the countless confused, accused, misused, strung-out ones an' worse
An' for every hung-up person in the whole wide universe
An' we gazed upon the chimes of freedom flashing.
Uma tentativa de tradução, mesmo que só de oito das doze estrofes, é um trabalho ingrato: sei que não sou fiel nem ao texto nem ao ritmo; tento apenas reproduzir imagens e a mensagem com palavras minhas, talvez manter alguma musicalidade. E mais, pretendo mostrar a quantas milhas, milhares de milhas, a poesia de Dylan está das "letras" das cançonetas portuguesas que por aí se ouvem, patetas, inúteis, feias, fúteis, panfletárias, lixo. Sem excepções dignas de menção.
Lá por diante entre o sol-pôr e o bater da meia-noite
Abrigámo-nos à soleira, com trovoada a ribombar.
O majestoso repicar dos raios jorra sombras sobre os sons
Parecem ser sinos a faíscar pela liberdade.
Faíscar pelos guerreiros cuja força é não lutar
Faíscar pelos refugiados na indefesa rota de fuga
e por cada desvalido soldado na escuridão
Víamos os sinos a faíscar pela liberdade.
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Entre o martelar demente do granizo a lacerar
O céu estoirava em poemas numa nua fantasia
Que o bater dos sinos ecoava no soprar da brisa ao longe
Deixando badaladas de relâmpagos e trovões.
Batem pelos afáveis, e batem pelos meigos
Batem pelos guardas e os que o espírito protegem
Pelo poeta e pelo pintor à frente do seu tempo
Nós víamos os sinos a faíscar pela liberdade.
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E apesar da cortina branca de uma nuvem a brilhar
E as manchas de hipnótica névoa que devagar se estava a abrir
Luzes eléctricas ainda rasgam como setas lançadas sobre aqueles
Condenados à deriva, ou a quem vedada está a deriva.
Dobram pelos que procuram, no seu trilho silencioso,
Pelos amantes solitários, de histórias tão sofridas
E por cada inocente e gentil alma por engano aprisionada
Nós víamos os sinos a faíscar pela liberdade.
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Com os olhos a ver estrelas e rindo ao ser apanhados
Distraídos pelas horas que pareciam estar suspensas.
Ouvimos mais uma vez e deitamos um última olhar
Pasmados e aturdidos, até aos sinos se calarem.
Dobram pelos que sofrem, com feridas que não têm cura,
pelos inúmeros acusados, abusados, exaustos ou ainda pior
E por cada enforcado em todo o vasto universo,
Víamos os sinos a faíscar pela liberdade.
Esta angústia com as liberdades sob ameaça ganha hoje nova perspectiva; estávamos em 1964 na guerra fria, o conflito era o do Vietname, e agora pode parecer que ainda estamos pior, com atentados e guerra ainda mais próximos de nós e a tentação autoritária pendente. A actualidade de Dylan é por isso ainda mais perturbadora e genial.
Como saudosista dos Byrds, aqui vai a inesquecível versão:
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Já agora, a propósito do Nobel, atenção ao primeiro grande livro de Svetlana Alexievitch (Nobel 2015), "A guerra não tem rosto de mulher", só agora editado em Portugal, que traça um retrato comovente da vida da Rússia sob a escuridão da ditadura soviética.
quarta-feira, 26 de outubro de 2016
Mundo espantoso: a cordilheira Torngat, ao norte do Labrador
'Descobri' há pouco, na net, esta cordilheira do outro lado do Atlântico, na península do Labrador, já pertinho da Gronelândia. Aliás, os dois territórios são muito próximos pela Geografia: nascidos da mesma placa tectónica, separaram-se no Cretácico, são o mesmo tipo de terreno - montanhas, intercalando fiordes e tundra. São também próximos na História humana, pois os Vikings na sua assombrosa epopeia náutica passaram pela Gronelândia e chegaram ao Labrador, e foram mesmo ainda mais além até à Hudson Bay; e as missões Moravianas que no século XVIII partiram da Europa para "enquadrar" e cristianizar os chamados esquimós seguiram a rota Viking, também para a Gronelândia e o Labrador !
O que eu pretendo é só mostrar o espantoso panorama da Cordilheira Torngat; é trivial dizer que parece de outro mundo, suponho que se lá pudesse ir, tanto em visita aérea como trilhando os vales fluviais, sentiria o arrepio de ter mudado de planeta.
Falta aqui o som, ou melhor, o silêncio ampliado talvez pelo silvo do vento, falta respirar o ar e a espacialidade, ver o tempo a passar nas nuvens e na luz, uma águia lá em cima, um caribu em baixo. Mesmo assim...
Nachvak - o rio, lago e fiorde que mais marca o território da 'Torngat Range'.
Estamos pelos 58-59º de latitude norte. Ainda longe do Ártico, mas já não há árvores.
O nome Torngat deriva da palavra Inuit Torngait, "o lugar dos espíritos". Percebe-se porquê.
Fiorde de Nachvak
Mount Caubwick, ou Mont d'Iberville, 1652 m, o mais alto:
Os rápidos do rio Nachvik:
Kayaking extremo...
Rio Nachvik
Ninguém num raio de cem quilómetros. Eu até sou um homem da cidade, da cidade europeia sobretudo, adoro visitar cidades, acho-as todas diferentes e quase todas interessantes. Terem todas a mesma zara, pizzahut ou cadeia hoteleira não me afecta, são detalhes, de resto é quase tudo diferente, variado, torres, arcos, praças, vielas, portas e janelas, pontes, rio ou mar; terem os mesmos jovens no banco do autocarro agarrados ao telemóvel é também um detalhe passageiro, de resto quase todos os hábitos são diferentes, desde a sesta ou não, o cumprimento obrigatório ao entrar ou a indiferença, a hora de ponta ou a mansidão das seis da tarde, a maior ou menor abundância de livrarias, gente nos cafés a ler ou conversar, a noite animada ou tudo a fechar cedo, pandemónio de trânsito ou ruas pedonais e ciclistas, avenidas arborizadas de passeios largos ou ruas estreitas de passeios estreitos, picadeiros de casais com carros de bébé, jovens a saborear gelados no Inverno, os copos de pé na rua ou ruidosamente de pé ao balcão, os cinemas e teatros no centro com fila à porta, a iluminação nocturna e seus reflexos, o som dos relógios e sinos e dos eléctricos nos carris, o aroma ambulante de frutos do mar, carnes grelhadas, fumados, doçaria. Não há duas cidades iguais.
E contudo cansa, ver gente, gente, gente de mais. Os humanos cansam, mais ainda quando se ouvem e vêem noticiários. Nesses momentos, anseio por uma cabana na Cordilheira de Torngat.
Um bom sítio para depois da vida ?
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Bem, não menti mas quase. Afinal, uns 100 km a sul de Nachvak Fjord, há uma antiga Missão Moraviana* em Hebron, na costa leste do Labrador, nas faldas marítimas dos montes Torngat. Gente, portanto.
Mapa das Missões Moravianas no Labrador. Killinek, Ramah e Hebron estão na região da Cordilheira Torngat.
Fundada em 1830, é uma entre muitas criadas na península por missionários centro-europeus da região (checa) da Morávia para fixar e enquadrar as populações ditas "esquimós", sendo depois aproveitada pela Hudson Bay Company para criar um entreposto e utilizar a mão de obra lá fixada.
Hebron no século XIX.
Livro de cânticos alemães traduzidos para a língua Inuit, encontrado na Missão.
Tinha igreja, escola, cantina, hospital, celeiro, armazém, alojamento e serviço postal; chegou a albergar, além dos missionários, 50 Inuit, até que a congregação decaiu, em 1926, e Hebron foi transferida para os negócios de peles da HBC. Finalmente abandonada em 1959, entrou em ruína até há pouco, tendo sida restaurada como "National Historic Site" com uma presença mínima de pessoal inuit ligado à gestão do Parque Natural das Torngat.
Não incomoda. Há sempre uma página de História, mesmo nas paragens onde menos se espera !
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* Igreja de filiação luterana que apregoa a piedade, o estudo dos textos sagrados, a oração e o canto religioso, "Herrnhut" ou "Unitas Fratrum" (séc. XV) foi uma das mais antigas,talvez a primeira, comunidades protestantes; tendo alastrado para Norte, foi a partir da Dinamarca que os missionários partiram para os territórios árticos da Gronelândia, e daí para o Labrador, atraídos pelas notícias trazidas dos primitivos povos 'esquimós' (expedição do Beagle, 1830).
"Ide por todo mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura”, dizem as Escrituras. E eles foram.
domingo, 23 de outubro de 2016
J. S. Bach por Margot Oitzinger, Nuria Real e a Fundação Bach de Rudolf Linz
Bach como nunca antes (já disse isto antes, eu!), em gravação de cristalina pureza, cada nota uma perfeição - e ouvem-se mesmo todas ! - cada instrumento um virtuoso. A 'tal' espiritualidade contemplativa é que se deixa para segundo plano, tal é a beleza da música, a música gloriosa que Bach escreveu.
A novidade vem do projecto de Rudolf Linz -a Bach Stiftung (Fundação Bach), com Orquestra e Coro, que aderiu e reinventou o canon interpretativo usando um só músico por parte com uma qualidade nunca antes atingida. Publicou já mais de 15 volumes das cantatas. Deixo aqui três momentos de concerto na Igreja protestante de Trogen, na Suíça, sem dúvida o país onde a música antiga se pratica mais intensa e assiduamente.
Neste primeira ária, é a voz de diamante de Margot Oitzinger que dá vida a ária Wohl euch, ihr auserwählten Seelen da Cantata BWV 34.
Dirige Rudolf Lutz
Margot Oitzinger - alto
Agora, da Cantata BWV 66, o dueto Ich furchte zwar/nicht des Grabes Finsternissen
Alex Potter - alto
Julius Pfeifer - tenor
A parte de violino, a solo ou em contraponto, é genial; e a voz do alto ?
O sorriso feliz daquela senhora asiática diz tudo, apesar do assunto 'pesado' da escuridão da sepultura...
A terminar, a voz fora-deste-mundo da admirável Nuria Real:
Cantata BWV 36 Schwingt freudig euch empor
Nuria Rial - soprano, John Holloway - violino.
Auch mit gedämpften, schwachen Stimmen
Wird Gottes Majestät verehrt.
Quem pode não gostar de Bach ?
quarta-feira, 19 de outubro de 2016
A melancolia de terminar um livro.
Acontece-me com leituras em que me envolvo mais a fundo, leituras que sinto, pelo menos em parte, como pertença minha, escritas por mim, retratos de mim ou seja lá o que for.
São como seres vivos, esses livros; nascem, vivem e terminam. E quanto mais intensamente vivem enquanto são lidos, mais nos magoamos com o seu fim; ao ponto de muitas vezes - acontece cada vez mais comigo - me apetecer voltar atrás a ler tudo, ou partes, aquela descrição, aquele diálogo, os cantos dobrados - sim, tenho essa mania de dobrar cantos; sobretudo não pôr o livro de parte, não o arrumar, ficar ali com a capa à vista para marcar lugar no meu dia. Não o deixar morrer.
Um livro destes é uma obra de arte também como objecto, podia estar exposto, encaixilhado, ou pelo menos com a lombada a ver-se na prateleira mais à mão, a lembrar que mesmo 'terminado' ainda existe, está ali sempre que a ele se queira regressar, às paisagens e lugares que ele descreve, às pessoas que estão ali dentro impressas preto sobre branco.
Foi assim com a Guitarra Azul de John Banville. Durante semanas foi meu companheiro, entrei dentro das vidas de outras pessoas - não interessa se inventadas, são vidas - que me fizeram, em silêncio, rir ou sofrer, gostar ou odiar, que me deram a sua intimidade. Deixar de as ter a meu lado, ou dentro de mim, ou nas páginas impressas, é uma falta, é um desaparecer de entes queridos, é uma nostalgia de vidas que deixam de existir. Bolas. A boa literatura deixa marcas fortes.
Oliver, Polly, Gloria, Marcus, adeus. Obrigado por me teres dado a conhecer estes eus de ti próprio, Banville. Mais uma vez.
E pela Janela Aberta de Matisse, com dirigível e tudo.
domingo, 16 de outubro de 2016
A Guitarra Azul - John Banville inspirado em Wallace Stevens inspirado em Picasso.
Não será a melhor obra de John Banville, mas é mesmo assim a melhor obra literária que li este ano.
O narrador-Banville é mais uma vez um pintor, Oliver Otway Orme (O.O.O., 000, a brincadeira começa aqui) caído em desgraça criativa e existencial. Deixou de saber o que fazer com a "realidade", se ela é real ou se está dentro dele, se tem alguma essência captável ou se é totalmente inatingível... como no poema de Wallace Stevens que o inspirou:
They said, "You have a blue guitar,
You do not play things as they are."
The man replied, "Things as they are
Are changed upon the blue guitar."
Mas a crise é ainda mais vasta: Oliver está constantemente a ruminar a sua vida passada, como se estivesse à procura de um sentido, de um sinal, mas só encontra (só nos mostra) sinais errados, becos sem saída e vielas tortuosas. A crise estende-se mais ainda na relação com as mulheres, completamente instável, caótica, indo rapidamente do tresloucado ao indiferente, e descrita de forma cruel e sarcástica. Em novilíngua psico, dir-se-ia "bipolar". A complicar tudo, há a morte sempre presente da única filha, um leit motiv funesto a acrescentar um sofrimento de fundo:
“Ha! What I wrote down first, instead of painter, was painster.
(...)
Pain, the painster’s pain, plunges its blade into my barren heart."
Neste contexto, a história é rocambolesca, com episódios truculentos em sucessivas localidades (casa dos pais, atelier, casa dos pais da amante, casa do alemão rico lá da terra, "casa", jardim de inverno, Aigues Mortes há muitos anos...). Há algo de teatral nesta sucessão de cenários para um desenrolar dramático das catástrofes sucessivas de que o narrador é vítima, ou se compraz em ser vítima, ou se calhar é mesmo autor...
A instabilidade de O.O. também se reflecte nessa constante mudança de paradouro, como se estivesse sempre à procura, ou sempre em fuga - e está, está em fuga de si próprio. Como habitual em Banville, o sarcasmo mais cruel é contra si mesmo, vitimizado até ao enjoo; começa pelo nome e nunca mais acaba. E, como ele também costuma fazer, dá-nos a volta no fim: afinal não demos conta mas havia mais, havia outra 'coisa' nunca mencionada, que ele nunca quis ver, embora estivesse bem à vista. Ele próprio (o miserável O.O.) é ao mesmo tempo o mau da fita e a vítima, poor thing. Contra as expectativas, o livro termina numa nota de tranquilidade nostálgica quase feliz.
A escrita é que tem aquele toque único de Banville, com humor sardónico a temperar uma permanente inventiva que na língua inglesa até parece fácil. Jogos de palavras espertalhões, descrições buriladas, quase poéticas, preciosidades vocabulares ('asportation', 'haruspicating'), uma grande inteligência narrativa. Só me desagradou um detalhe, tanto mais que ao longo do livro Banville tem várias piscadelas ao leitor a lembrar que tudo aquilo é inventado, tudo vai sendo inventado à medida que é escrito: para quê o pormenor da cliptomania do autor ? Não parece ter nenhuma função, só atrapalha, e é demasiadas vezes referido. Só para rebaixar mais o carácter de Oliver ? Não era preciso. Fiquemos com o melhor:
"There was a big, scouring wind blowing and by now it was a Poussin sky all over, blue as blue with majestic floatings of cloud, ice-white, bruise-grey, burnished copper. I would have done it with a thin cobalt wash and, for the clouds, big scumblings of zinc white — yes, my old standby! — dark ash and, for the glowing copper fringes, some yellow ochre toned up with, say, a dash of Indian red."
"How I savour these late days, the last of the year, all dense blue and charcoal and honey hues with long-shadowed backgrounds by the Chico. The sun is still in turmoil and, thanks to its flares, our sham midwinter summer persists. A great silence reigns, as if the world were crouched in stillness, holding its breath. What is awaited? I feel sequestered, underground, poking out my snout now and then to take a measuring sniff of the air. Yes, see me there, old Brock* in his den, waiting too and watching for he knows not what, his pelt prickling, sensing some fearful imminence."
A tradução "portuguesa" podia ser excelente, mesmo com algumas gralhas tipográficas; mas é lamentável ato e espetáculo e outras assim à moda do 'f***ing' acordo ortográfico. Muito melhor ler no original, claro.
Espero não ter sido spoiler, desmancha prazeres, para quem vier a ler.
Ler online:
http://nemaloknig.info/read-294938/?page=1
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Ah, falta esclarecer que Banville foi buscar o título a um poema de Wallace Stevens, que por sua vez se tinha inspirado numa guitarra azul de Picasso.
A Guitarra Azul de Wallace Stevens
Merecia uma menção à parte no 'Livro de Areia', mas já que há uma conexão de grande proximidade, aqui fica o magnífico "Homem da Guitarra Azul"; não na íntegra, pois é muito longo, mas os dois primeiros poemas:
Wallace Stevens, The Man with the Blue Guitar, I e II
I
The man bent over his guitar,
A shearsman of sorts**. The day was green.
They said, "You have a blue guitar,
You do not play things as they are."
The man replied, "Things as they are
Are changed upon the blue guitar."
And they said then, "But play, you must,
A tune beyond us, yet ourselves,
A tune upon the blue guitar
Of things exactly as they are."
II
I cannot bring a world quite round,
Although I patch it as I can.
I sing a hero's head, large eye
And bearded bronze, but not a man,
Although I patch him as I can
And reach through him almost to man.
If to serenade almost to man
Is to miss, by that, things as they are,
Say it is the serenade
Of a man that plays a blue guitar.
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* Brock, personagem-texugo de Beatrix Potter
** a Shearsman of Sorts ~ a taylor of types/samples
sexta-feira, 14 de outubro de 2016
Um poema de Robert Zimmerman
Nos media chamam-lhe "letras" de Bob Dylan. São poemas, mas eles não sabem.
Deixo aqui um dos meus favoritos, a senhora com olhos tristes das terras planas.
Sad-eyed lady of the lowlands
With your mercury mouth in the missionary times,
And your eyes like smoke and your prayers like rhymes,
And your silver cross, and your voice like chimes,
Oh, who do they think could bury you?
With your pockets well protected at last,
And your streetcar visions which you place on the grass,
And your flesh like silk, and your face like glass,
Who could they get to carry you?
Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I put them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?
With your sheets like metal and your belt like lace,
And your deck of cards missing the jack and the ace,
And your basement clothes and your hollow face,
Who among them can think he could outguess you?
With your silhouette when the sunlight dims
Into your eyes where the moonlight swims,
And your match-book songs and your gypsy hymns,
Who among them would try to impress you?
Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I put them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?
The kings of Tyrus with their convict list
Are waiting in line for their geranium kiss,
And you wouldn't know it would happen like this,
But who among them really wants just to kiss you?
With your childhood flames on your midnight rug,
And your Spanish manners and your mother's drugs,
And your cowboy mouth and your curfew plugs,
Who among them do you think could resist you?
Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I leave them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?
Oh, the farmers and the businessmen, they all did decide
To show you the dead angels that they used to hide.
But why did they pick you to sympathize with their side?
Oh, how could they ever mistake you?
They wished you'd accepted the blame for the farm,
But with the sea at your feet and the phony false alarm,
And with the child of a hoodlum wrapped up in your arms,
How could they ever had persuaded you?
Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I leave them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?
With your sheet-metal memory of Cannery Row,
And your magazine-husband who one day just had to go,
And your gentleness now, which you just can't help but show,
Who among them do you think would employ you?
Now you stand with your thief, you're on his parole
With your holy medallion which your fingertips now fold,
And your saintlike face and your ghostlike soul,
Oh, who among them do you think could destroy you?
Sad-eyed lady of the lowlands,
Where the sad-eyed prophet says that no man comes,
My warehouse eyes, my Arabian drums,
Should I leave them by your gate,
Or, sad-eyed lady, should I wait?
terça-feira, 11 de outubro de 2016
Dolce vita na minha ♥casinha de praia
Está-se bem no nosso refúgio à beira-mar, sobretudo quando uma mudança de tempo traz a paragem do vento, tardes suaves com nuvens esfiapadas ou aos cordeirinhos e pores-do-sol bíblicos.
Nunca tinha observado com tanta atenção os fenómenos atmosféricos e o modo como transformam a paisagem, as incidências da luz ou da sombra ou da penumbra, as diversas cores da luz, do azul ao amarelo, laranja, vermelho; os matizes das dunas com luz rasante, e as texturas que as paliçadas desenham entre a areia e a vegetação...
... e o modo como ventos diversos levantam as ondas, enfunando-as ou, pelo contrário, fazendo espumar as cristas. E as aves sentadas na praia ao crepúsculo, enfileiradas contra o vento ? e as formações em linha ou em V da passarada que voa ao fim do dia para a reserva do Cabedelo, na foz do Douro ? tem tudo a ver com o vento e a direcção da luz.
Tenho aprendido, portanto, a observar.
Luz cor-de-areia
Luz azul de fim de tarde
Dama Lua a enfeitar a noite...
Os homens também têm graça, sobretudo de bicicleta, e ainda mais se forem mulheres :) . Esforçadinhos, esbaforidos, a gingar com o esforço de pedalar se vão contra a nortada; uns heróis da velocidade, peito levantado, em roda livre, se o vento está de favor por trás... a variedade de posições sobre o selim dava um tratado. Estrangeiros, muitos, a sorrir ao vento, vêm do Norte e isto não é nada...
Também dependem do vento e das marés os surfistas ! É uma animação, quando as ondas vêm quebrar certinhas numa barra de espuma, vê-los a deslizar rápidos, em zig-zags.
Ao lusco-fusco e noite adentro surgem, discretos, quase secretos, os pescadores. Gosto de os ver empoleirados nos rochedos - se bem que seja mais perigoso - e mais ainda se estiver um grupo em linha, mais acima e mais abaixo conforme o relevo da rocha. Em contra-luz dão uma imagem poética, ora de solidão corajosa ora de equipa de bravos, conforme.
Há profusão de barcos que passam - barquitos de pesca, pequenos veleiros, traineiras mais ao longe, e os enormes cargueiros de contentores no horizonte, à espera de entrar em Leixões ou já de partida, como nesta sequência de fim de tarde, com as cores reais como a máquina as registou:
e com gaivota:
Também não faltam irritações, claro.
A maior são as moto-4 de escape aberto, aos estouros. Por mim podiam ter 4 furos, era bem feito. Depois há os cavalos, de uma escola perto que vem treinar em passeio. Deixam marcas insuportáveis, seja na pista, no passadiço ou na areia. Gente queque mal-educada. Dão um trabalho ingrato à equipa que todas as manhãs limpa a pista.
Ah, aquela tábua empenada onde às vezes tropeço...
Há ainda um (e só um) bar com volume de som para ser ouvido a dez quilómetros; felizmente, é só à vezes, quando tem disc-jockey e encontro de motards, por exemplo. ou casamentos. Deixa de se ouvir o mar de todo; já bastava o ruído incómodo das camionetas, faltava só o bum-bum da banda sonora electro ou lá o que é.
Durante a semana é mais sossegado, valha-nos isso. Pista vazia, mim de bicicleta... ir tomar café lá adiante ao "Cremosi", ou ao "De'licious", é um must, se o tempo está de feição. Agora abriu um que serve Musetti, aromático, excelente. O croissant matinal sabe pela vida - ainda não entrei em nenhuma dieta especial, tenho de aproveitar ;). Almoçar na varanda ao ar livre tornou-se nossa regra, e um sonito pelas 4 ou 5 da tarde, banhado pelo sol na espreguiçadeira, é um daqueles privilégios que me fazem sentir imensamente rico e sortudo. Mesmo que sejam atributos desmentidos pelos factos e pelas atribulações da vida.
Agora está o Inverno à porta, e chuvadas puxadas de Sul não se costumam aguentar - a casa é virada a poente e a sul. Mas vai saber bem ficar dentro à lareira, com a Pure Classic a encher o espaço de música boa e talvez a surpresa de uma fugidia aberta a encarnar as paredes, ou de relâmpagos caindo no mar.
Entretanto ainda vai havendo preciosas horas de sol.
Decididamente, dantes não via nada disto com olhos de ver.
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