sábado, 28 de janeiro de 2017

Pós-verdade, multiculturalismo, Hollywood, o afro-xunga de Bonga e os B Fachada.



Público, 27/1/2017

Esta fez-me rir, durante o regresso de Lisboa no Alfa.

Fala-se bastante das pós-verdades e verdades alternativas, mas são sempre os "outros", políticos ou jornalistas/comentadores, que caem nesse crime de opinião, nunca somos nós. Ora as piores mentiras que se querem fazer passar por verdade estão acima desse patamar - são culturais, para não dizer civilizacionais. Quase se resumem nisto: 1. Passar por arte, ou "património cultural", o que é "lixo cultural", e 2. Negar ou desvalorizar a História como único critério de seriedade no discurso.  Esta maneira de pensar teve origem na antropologia, que introduziu os conceitos de "verdade relativa" - cada cultura tem as suas "verdades", nenhuma é superior, a História é escrita pelos mais fortes, etc. - e no famoso multiculturalismo que prega a igualdade de tratamento a todas as culturas, sem hierarquias.

Esses pressupostos ditos "pós-modernos" trouxeram a valorização de lixo como se cultura fosse, do vale-tudo histórico, e do discurso "povero", andropóide e cheio de ícones que prolifera nas redes sociais como se fosse opinião. E vai até ao ruído do hip-hop e do afro - que não passa de palavreado social sobre batucada em dois ou três acordes básicos - como forma de música de vanguarda e de consciência, poética até !

Neste caso "povero" não quer dizer pobre de recursos: a burguesia "artística" de Hollywood é um dos exemplos mais tipicos destas atitudes. Está na frente de combate contra a administração agora eleita, mas não há classe mais burguesa, mentes mais cretinas e nível artístico mais baixo que essa tropa de actores/realizadores/produtores riquíssimos que se fazem passar por intelectuais com "consciência social"; os modos de vida e a sociedade tribal de que fazem parte são do mais fútil e medíocre, e isso nota-se nas realizações cinematográficas perfeitamente indigentes - imbecis mesmo - que se apresentam nos écrans ano após ano. Não se faz por ali cinema como arte, de há muitos anos para cá, desde o inicio do século pelo menos. Só entretimento, cenas de terror apocalíptico e panfletos de pós-verdade. Que autoridade têm esses para criticar ou se distanciar do sistema ?

Mas também não existe Arte nem Cultura (com C) na música e na criação plástica que se vai produzindo. É tudo simultâneamente feio, kitsch e comercial. As grandes 'novidades' como o hip-hop já referido ou o novo-kitsch de Björk ou o gosto parolo de Jeff Koons e Joana Vasconcelos são coisas palavrosas, coloridas, vistosas, apelando ao imediato do cérebro reptiliano, mas sem matizes nem harmonias nem conteúdo. De Arte só resta, talvez, alguma arquitectura que ainda se norteia pela beleza e imaginação - elegância, harmonia, estrutura funcional integrada no espaço.

Vamos ao que me fez rir, a tal pós-verdade cultural : tem a ver com tudo isto do multiculturalismo e das verdades alternativas. Era no Público de sexta-feira, um artigo central de 2 (DUAS) páginas com foto gigante sobre a genialidade de Bonga e os B Fachada. Em várias colunas laudatórias atribuem-se adjectivos como "tesouro", e cito um dos melhores parágrafos:

         "Bonga e B Fachada [...] estarão juntos na Galeria Zé dos Bois, a associação cultural lisboeta que é desde há muitos anos pólo fundamental, dinamizador, da vida musical e artística da cidade (o concerto está marcado para as 22 h e a lotação está esgotada)."


A GZB, como Mário Lopes abrevia, deve então figurar em todos os roteiros de arte da humanidade culta ! Os grande da música e da arte já por lá passaram ? Por exemplo Arvo Pärt, Phillip Glass, Joyce Didonato, Anselm Kiefer, Hodgkin...

Ah não, não, não é "essa" cultura.

O senhor M. L. que escreveu o artigo não se deve dar conta do disparate, da falsidade alternativa, da perversão de critérios de cultura, e até de jornalismo, que se reflectem na sua prosa. Está integrado no sistema de mentira mediática. Toma lixo por arte. Está prisioneiro da pós-liberdade.


Desenho de Jean para o Le Point.


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P.S. Não vou falar em detalhe do concerto de András Schiff na Gulbenkian, que foi decepcionante. Não tanto pela orquestra Cappella Andrea Barca, que tocou lindamente, com o som bonito, fluente e coeso de grandes músicos, mas sim pelo próprio Schiff, que de tudo querer - solista no piano e director de orquestra - tudo perdeu. Uma permanente distracção e movimentação corporal entre as duas funções resultou em mediocridade, sobretudo ao piano, com interpretações dispersas, desinspiradas, vulgares, secas, quase robóticas. Deixo de ser "cliente" deste Schiff.




3 comentários:

Gi disse...

Ah, Mário, gosto mesmo muito de o ler.
Muitas vezes clareia-me as ideias, que por muito que eu queira se vão embaraçando no meio da confusão informativa - ou pós-informativa? ;-)
Pena o concerto do Schiff, ou melhor, a atitude do Schiff.

Anónimo disse...

Não me diga que no Zé dos Bois nem arranjaram um muçulmano para nos ensinar boas maneiras! Na marcha d('algum)as senhoras, na Alemanha, apareceu um a cantar a sua seca de "AAAAAAAAAA"s ao pessoal. Isso sim, é avant-guarde.

Há uns tempos trocámos aqui ideias sobre a desarte contemporânea. Depois de uns tempos afastada do "bom tom" blogosférico, discordo comigo. Eu ia-me indo, Mário!! Eu quase que me ia!

É sempre bom lê-lo.

Mário R. Gonçalves disse...

Que bom voltar a ter a sua visita aqui, humming. E saber da sua resiliência.
Haverá esperança também para o [suss]urros ?

Não deixaremos passar as avant-gardes ! OK ? :D