segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Receita para jardim no caminho de sirga



                                Receita para jardim no caminho de sirga

                                Içar a velha canoa do canal, assentar a quilha
                                na relva seca. Enchê-la com terra e cacos de tijolo,
                                pesado quanto baste, pr'a cimentar a sua alma inquieta.

                                Plantar da proa à ré com medicinais:
                                um pequeno limoeiro crescido de semente,
                                lúcia-lima ou verbena, lavanda, zimbro

                                e flor de lúpulo, p'ra encaminhar a barreira de ferrugem.
                                Pressionar as raízes para baixo, regá-las.
                                No Verão as abelhas cuidarão das flores,

                                e tu secarás as pétalas, colherás os frutos,
                                e deles distilarás tão vigorosos sumos
                                que farão nascer os mais bravios sonhos de liberdade.

 


Recipe for a Towpath Garden

Lift the old canoe from the canal, set down its keel 
on the dry grass. Fill it with soil and broken tiles 
heavy enough to thwart its restive spirit. 

Plant it bow to stern with medicinals: 
a small lemon tree grown from a pip, 
lollipop verbena, lavender, juniper 

and hops to train up the rusty barrier. 
Press down the roots, give them water. 
Next summer bees will pollinate the flowers 

and you’ll dry the petals, pick the fruits, 
then distil drinks from them so strong 
they’ll bring the wildest dreams of freedom.
                                                                                 
                                                             Nancy Campbell

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

No Rivoli do Porto: 'Dance' de Lucinda Childs com música de Philip Glass


Passou pelo Porto a histórica criação de Lucinda Childs 'Dance', que fez parte de um movimento de renovação do bailado pelas salas e ruas de Nova Iorque, onde Childs trabalhava junto com outros coreógrafos como Merce Cunningham ou Trisha Brown.

Criado em 1979, 'Dance' é um bailado minimalista, sem espargatas nem elevações nem piruetas em bicos; ao som da música de múltiplas repetições com variações súbitas e encadeadas de forma cada vez mais complexa composta por Phillip Glass, com momentos de génio e grande beleza, os dezassete bailarinos dançam movimentos amplos, em corrida ou em rotação, retomados vezes sem fim com pequenas variações, no espaço e no tempo, culminando em jetés e saltos cruzados de belo efeito coreográfico; este efeito é enriquecido com a projecção do filme que duplica e amplia os movimentos dos bailarinos no palco.  O todo cria uma espécie de "paisagem geométrica" de formas brancas bailando ao som dos ritmos arrebatados e impetuosos, paisagem onde a matemática se transforma em feérica poesia.



O Ballet de l'Opéra de Lyon trouxe esta obra maior do século XX retomando a coreografia original; só a filmagem projectada é nova, realizada com os bailarinos actuais, utilizando habilmente as possibilidades das tecnologia digital.

Um breve excerto de uma actuação anterior em Montpellier:




domingo, 17 de fevereiro de 2019

Excertos do 'Atlas' de Jorge Luis Borges: descobertas, um cilindro, e a cidade de cristal e crepúsculo


Recentemente editado cá pela Quetzal (trad. com A.O.), Atlas de Jorge Luís Borges (1984) não é certamente uma das suas obras primas, é uma colectânea ligeira de crónicas de viagem - Maiorca, Irlanda, Istambul, Veneza, Genebra, Atenas -, miniaturas que parecem escritas em cima do joelho. Não deixa mesmo assim de ter, aqui e ali, observações magníficas em harmonia com a sua visão única e mágica do mundo.

Logo na Introdução,

     Não há um só homem que não seja um descobridor. Começa por descobrir o amargo, o salgado, o côncavo, o liso, o áspero, as sete cores do arco e as vinte e tal letras do alfabeto; passa pelos rostos, os mapas, os animais e os astros; conclui pela dúvida ou pela fé e pela certeza quase total da sua própria ignorância.

Mais adiante, no Hotel Esja de Reykjavik,

    No decurso da vida há factos modestos que podem ser uma dádiva. Eu tinha acabado de chegar ao hotel. Sempre no meio dessa neblina clara que vêem os olhos dos cegos, explorei o quarto indefinido que me tinham destinado. Tacteando as paredes, que eram ligeiramente rugosas, e dando a volta aos móveis, descobrí uma grande coluna redonda. Era tão larga que quase não podiam abarcá-la os meus braços esticados e custou-me juntar as duas mãos. Soube depois que era branca. Maciça e firme, elevava-se até ao céu raso.
    Durante uns segundos conhecí essa curiosa felicidade que oferecem ao homem as coisas que são quase um arquétipo. Naquele momento, sei bem, recuperei o gozo elementar que senti quando me foram reveladas as formas puras da geometría euclidiana: o cilindro, o cubo, a esfera, a pirâmide.



"Alguna vez escribí en un prólogo Venecia de cristal y crepúsculo. Crepúsculo y Venecia para mí son dos palabras casi sinónimas, pero nuestro crepúsculo ha perdido la luz y teme la noche y el de Venecia es un crepúsculo delicado y eterno, sin antes ni después." 

Borges perdeu a vista, mas mantinha visão, e que visão.



quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

A 'Sala delle Asse' (Sala das Tábuas), uma floresta entrelaçada de Leonardo da Vinci


Em 2013 foi redescoberto um mural do séc. XV de Leonardo da Vinci, numa sala do Castelo dos Sforza em Milão - a Sala delle Asse (Sala das Tábuas), com paredes forradas de tábuas de madeira. Fica no 1º andar da torre nordeste, por cima da Sala do Tesouro.
Castelo Sforza de Milão: a torre nordeste, "da Castellana", e a ponte-galeria de acesso.

Galeria sobre arcos de acesso à torre quadrada.

A Sala delle Asse fica no 1º andar da torre.

Da Vinci executou o mural entre Abril e Setembro de 1498, quando estava contratado por Ludovico Sforza, duque de Milão, para decorar o castelo. Para seu uso, o duque cedeu-lhe esta divisão, com acesso por um pórtico em galeria suportada por arcos sobre o fosso (ponticella) desenhada por Bramante.

A 'loggia della ponticella' - quantas vezes terá Leonardo por aqui passado?

A pintura  da Sala delle Asse representa a copa de dezoito amoreiras-brancas (morus alba) em fruto, como se fosse uma floresta, e encontrava-se em muito mau estado no fim do séc XX. Tinha estado escondido sob muitas camadas de cal durante 500 anos.

A copa múltipla compõe-se de um entrelaçado de ramos e folhagem suportado por enormes troncos, assentes em raízes monocromáticas. Os ramos preenchem o tecto enquadrados num padrão de fitas entrelaçadas em anéis,  os "nodi vinciani".

Chama-se 'Sala das Tábuas' por ter a parede revestida a tábuas até meia altura.


Ramos, folhagem e frutos em diálogo com a fita dourada que entre eles volteia.

Mas o que parece um emaranhado de fitas, anéis e laços, na verdade é uma única fita contínua que se enrola sobre si própria, intrincadamente labiríntica, num padrão que Da Vinci usou noutras obras, como veremos.


No centro do tecto está o escudo de armas dos Sforzi:

A águia imperial alterna com o basilisco ('rei' das serpentes, mitológico)

Este restauro recente da Sala começou em 2012 e prolongou-se pelo menos até ao final de 2018; suponho que ainda continue - o site do Castello Sforzesco anuncia o cancelamento das visitas. O maior problema é a humidade que corroía e 'borrava´a pintura; mas há outras dificuldades ainda não ultrapassadas, e alguma polémica sobre as técnicas a utilizar - pintar de novo, ou não, as partes mais deterioradas ? Mais claro ou mais escuro ? Ou deixar tudo esborratado como está ?

Mais:
https://www.milanocastello.it/en/content/leonardo-da-vinci
https://www.finestresullarte.info/551n_leonardo-da-vinci-sala-delle-asse.php

Nodi Vinciani, os entrançados de da Vinci

Consistem numa linha contínua formando um desenho circular com vários entrançados de .

Nesta sala Leonardo criou uma glorieta ou dossel vegetal entrançando ramos e fitas douradas. Mas o mais curioso é que ele usou repetidamente os nodi ! A começar pela Gioconda:
A orla peitoral do vestido


A Dama com Arminho:
Dama con l'Ermellino, 1488-1490


E tanto valor simbólico tinha este padrão que foi a base para o elaborado "logotipo" da Academia Leonardi. Neste labirinto curvilíneo, Leonardo combina os mesmos anéis múltiplos e símbolos entrançados de infinito ().


Não é brincadeira nenhuma - hoje faz-se digitalmente, em desenho assistido; mas à mão ?! Deve ter levado meses, com esta perfeição !


-------------------------------------------------------------------------------------------

Imagem antiga da torre quadrada e da galeria de acesso à Sala.


sábado, 9 de fevereiro de 2019

Ora aqui está uma lindíssima canção: Slow Dancers, de Mitski


Por entre tanto e tanto 'lixo' que nos desconsola da arte dos nossos dias, lá surge uma pérolazita de vez em quando... como um antigo lied , uma música nunca ouvida, um canto refrescante, melancólico, belo.

 
Does it smell like a school gymnasium in here?
It's funny how they're all the same
It's funny how you always remember
And we've both done it all a hundred times before
It's funny how I still forgot

It would be a hundred times easier
If we were young again
But as it is
And it is
We're just two slow dancers, last ones out
We're two slow dancers, last ones out

And the ground has been slowly pulling us back down
You see it on both our skin
We get a few years and then it wants us back
It would be a hundred times easier
If we were young again
But as it is
And it is

To think that we could stay the same

But we're two slow dancers, last ones out
We're two slow dancers, last ones out
Two slow dancers, last ones out


-Restamos só nós dois, bailando lentamente -



quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Memórias da 'outra senhora': os mini-atlas das agendas de bolso


Lembro-me como adorava estudar e folhear os pequenos atlas coloridos que vinham inseridos nas agendas de bolso, no tempo da ditadura, anos 60-70. Claro que incluíam as colónias,  propaganda obrigava. Mas à falta de melhor - eu não tinha melhor, não havia globos terrestres como agora à venda em toda a parte a preço acessível, e os atlas grandes, em livro, eram caríssimos - esses mini-atlas eram uma maneira de escapar virtualmente para longe. Todos aqueles países nórdicos totalmente desconhecidos, os antípodas Austrália e Nova Zelândia, o enorme Canadá cheio de mistérios.

Mas os mapas, bonitos que parecessem, eram fartos em erros.

Arouca, entre Viseu e Vila Real ? que anedota.

Páginas de glória do regime, tanto detalhe.

Erros grosseiros, veja-se a localização de Viena e Graz, por exemplo, ou Glasgow; Gibraltar em África, Sarajevo única cidade da Jugoslávia, gralhas como Stornawsy. Mesmo assim...
Incompetente regime! Nao só Pequim não existe, como nem sequer destacam Macau, muito miudinho, ah ah!

 Outra versão, desdobrável, mostrava melhor as estradas e errava menos.


Havia também as tabelas de conversão - milhas, pés, polegadas, jardas, almudes e muitas outras, para o sistema centesimal; tabelas de sinais de navegação e de sinais de trânsito! quantas utilidades...



Esta era a Hippocampus, editada pela Araújo e Sobrinhos (1964).

Não tenho saudades, longe disso; mas há uma nostalgia das coisas que não tem nada a ver com o regime.


sábado, 2 de fevereiro de 2019

'Fratres' de Arvo Pärt, bailado num vídeo


Só acredito na Arte quando é fruto de uma dedicação exclusiva, prolongada, muitas vezes obsessiva, de alguém que dá pouca ou nenhuma importância à vida privada e mundana. Um criador contemporâneo que se ajusta ao perfil de Artista como o entendo, à maneira clássica, é Arvo Pärt, o músico estoniano que nos tem dado composições brelíssimas e inovadoras, faltando apenas aquela obra magistral, com dimensão de génio, para que se junte à galeria dos grandes compositores. O seu perfil de vida recatada, quase solitária, votado à música, permite esperar que isso venha a acontecer.


Aqui deixo uma coreografia para o comovente Fratres, interpretada ao violino por Hagar Maoz, e dançado pela bailarina Tamar Bardos, israelitas, num cenário que evoca as povoações do Médio Oriente assoladas pelos confrontos.