terça-feira, 19 de novembro de 2019

Aberdeen, a cidade de granito onde agora 'é bom viver', acaba de revelar o seu tesouro manuscrito medieval


Estive em Aberdeen em 2001; achei a cidade pobre e suja, mal gerida, o que prejudicava a harmonia da arquitectura em granito que dá ao centro urbano e residencial uma austera coerência. Também me pareceu muita gente mal vestida e a olhar o chão com ar infeliz, embora o bairro onde fiquei alojado fosse jeitoso, de jardins e casario bonito.

Tem ao que parece mudado muita coisa, em Aberdeen; não falta emprego, está na fase das ciclovias e do pedonal depois da limpeza de ruas e fachadas, e muitos prédios novos tipo mamarracho moderno vieram destoar no centro; mas é actualmente uma das cidades mais apetecíveis do Reino Unido: sossegada, plana, de dimensão cómoda, com muita oferta de habitação, de comércio e de trabalho, com boa acessibilidade; tem tido bastante procura como lugar para viver. E oferece ainda mais: uma antiga Universidade prestigiada, entre as 200 melhores nos rankings.

Por isso tudo apeteceu-me reviver a minha estadia; vou esquecer a negrura acumulada nas paredes, a porcaria das gaivotas nos parapeitos e muros, um sistema vergonhoso de recolha de lixo, a poluição dos autocarros em Union Street; e mostrar apenas o que tem de bom.

A sala de visitas no centro: Castlegate e a Mercat Cross, um espaço único e com detalhes de bela arquitectura.
A actual Câmara, com a torre neo-gótica; o antigo Bank of Scotland e no centro a Mercat Cross.

E do lado oposto, ao fundo da praça, a antiga Câmara, no local onde ficava o Castelo já demolido.


Seja embora a cidade altamente chuvosa, na nossa estadia não houve dia sem abertas de sol, mesmo que de pouca dura.
A Mercat Cross é uma marca que sinaliza as cidades de mercado (ou com feira) desde os tempos medievais (séc. XII). Também servia como local de proclamações públicas, tal como recruta de combatentes, julgamentos, éditos reais.

Num registo mais esotérico, houve à volta da Cross encontros e cerimónias de bruxaria na Idade Média, que terminariam com várias execuções. Actualmente há 'druídas' que lá dançam nos solstícios...

Uma das mais bonitas esquinas de toda a Europa. Colunas coríntias de belo efeito no edifício neo-clássico de Archibald Simpson, datado de 1839-42. Era um banco, agora é apenas um pub pretensioso.

É ao longo da Câmara que começa (ou termina) o principal eixo viário da cidade, a quase rectilínea Union Street.
A torre em gótico flamejante da Câmara (1868-1874) é o postal mais conhecido da cidade. Retrata a prosperidade e ambição de Aberdeen em plena era Victoriana.


Union Street foi construída em 1794 de acordo com um plano que pretendia abrir uma entrada imponente na cidade, que fosse alinhada com grande edifícios clássicos, o que rapidamente se revelou financeiramente impossível. Mas o desenho da rua modificou para sempre o anterior emaranhado de ruas medievais.

Faltam árvores a quebrar o cinzento, nesta rua que era altamente poluída quando lá estive. Agora os autocarros são ´limpos', o trânsito mais regulamentado, e as ciclovias também ajudam numa cidade plana.
A 'Granvia' ou a 'Oxford Street' de Aberdeen. Tem quase 1 milha, cerca de1,5 km.

Numa travessa lateral (St. Nicholas Street) está o pub mais afamado: o 'Prince of Wales'.


Ceilidh night in the pub

E logo a seguir, um dos recantos que frequentei por lá existir um simpático café/restaurante: a escadaria da Correction Wynd.

A Union Street passa por cima.

A tranversal mais interessante da Union Street é a Belmont Street, onde se realiza um mercadinho de rua tipo Portobello.

Nas paredes, granito; no piso, granito.


A Belmont Filmhouse, de 1896, exibe filmes "de autor" que não passam nas cadeias mainstream.

Ao fundo da rua, este é um dos bares de estudantes mais animados.

Já para o fundo de Union Street fica o mais bonito 'crescente' da cidade:
o Bom Accord Crescent.


Bon Accord ' é o motto de Aberdeen, vindo das guerras de Independência em que era uma senha secreta.
Deve ser por aqui que há qualidade de vida.

Um restauro recente.

Já na cidade alta, Esslemont Avenue faz parte dos quarteirões residenciais.

Foi neste Skene House que estivemos alojados.

No nº 28, 'The Cult of Coffee', bem hajam.

Fora de Union Street, há mais duas ou três ruas importantes; uma é Rosemount Viaduct, onde fica a cultura:
'His Majesty Theatre', de 1906; para Ópera, concertos e musicais, ao lado da St. Mark's church (1898).
Mais cúpulas e colunas. St. Mark's é uma desproporcionada e feia imitação da St Paul's de Londres.

A Biblioteca Municipal.


Marischal Street é uma rua em declive que leva até Trinity Quay, zona das docas .


O modelo de casa mais característico da cidade.

Ao descer para a zona do porto, passamos no impressionante
Museu Marítimo.

Granito de um lado, tijolo do outro, intervenção moderna a meio. Resulta bem.

Entrada

Modelo em grande escala da plataforma petrolífera Murchison, que é a peça central, com altura de dois andares do museu.

Dispositivos de intervenção sub-aquática - escafandros e veículos.

Memorabilia da História Naval britânica, abundante.

Modelo do navio vapor a roda de pás 'Prince Consort' (1858-1863), orgulho dos estaleiros locais, mas de pouca dura e triste fim.

Figura de proa do 'Star of Tasmania' (Aberdeen, 1856), um veleiro que fazia a rota do Pacífico.

Vista sobre as docas

À saída, ao voltar da esquina estamos no porto. Regent Quay é mais uma bela frente de granito.

Os escritórios da autoridade portuária.

No Trinity Quay, o cinzento da pedra contrasta com o colorido dos cascos.

King's College, Aberdeen

Vamos até à Universidade. A estrada, King Street, é feiíssima: uma recta com habitação pobre e decadente, armazéns e kebabs. Um caos de mau gosto e desleixo. O campus é uma misturada de antigo e novo (feio); só o King's College de 1495, sobejamente conhecido, com a sua torre, capela e quadrangle, merecem atenção mais demorada.


A cúpula da torre, em forma de coroa imperial da monarquia escocesa, é um restauro do século XVII.



O Quad (quadrangle) do campus.

O Bestiário de Aberdeen

Folio 37r : A pega e o corvo.

Um dos tesouros da Biblioteca do King's College é um bestiário do século XII, The Aberdeen Bestiary. É um manuscrito ricamente ilustrado com iluminuras, encontrado em 1542 e então denominado Liber de bestiarum Natura. É constituído por 100 folios (191 páginas) e 11 capítulos:
A Criação, Animais (selvagens), Animais (gado doméstico), Animais pequenos (ex. gato, formiga), Aves, Cobras e Répteis, Vermes, Peixes, Árvores, A Natureza do Homem (o mais extenso) e Pedras (safira, topázio, etc). Alguns seres são mitológicos - alcíone, dragão, unicórnio, hidra, sereia. Era uma obra destinada ao ensino dos monges nos mosteiros, e não estava acabada - várias notas de canto de página dão conta de novos complementos. A obra foi agora digitalizada com imagens de alta resolução.
A letra A de Arborum, folio 77v

Iluminura sobre abelhas !

O Leopardo

Sobre a Pantera:
" Há um animal chamado Pantera, multicolorido, muito belo e extemamente gentil. O 'Physiologus' (séc. IV) diz que as Panteras só têm um inimigo, o dragão. Quando satisfaz a fome, a pantera esconde-se na toca e dorme. Passados três dias acorda com um grande rugido, e da boca sai um aroma doce, como se fosse mistura de todos os perfumes. Quando outros animas ouvem, seguem os seus passos pela doçura do odor. Só o dragão, ao ouvir o rugido, fica a tremer de medo, e foge para as caves debaixo da terra."

Sobre o cão:
" Nenhuma criatura é tão inteligente como o cão, só os cães respondem pelo nome e se afeiçoam aos donos. Alguns perseguem presas na floresta para as caçar, outros vigiam e guardam rebanhos, outros protegem a casa de ser assaltada à noite, sacrificando a vida pelos donos; e ficam de guarda ao corpo do dono mesmo depois de morto."



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Com 200 000 habitantes, Aberdeeen é a terceira cidade grande da Escócia, depois de Edimburgo e Glasgow. O PIB da Escócia é maior que o de Portugal, e per capita é mesmo muito maior - o dobro do nosso (43000 USD). A área é quase a mesma. Não tenho dúvidas, pode muito bem ser um país independente; nem sequer tem os complexos de inferioridade catalães.





3 comentários:

Fanático_Um disse...

Obrigado por esta completa visita guiada. Da Escócia só conheço (e mal) as cidades de Glasgow e Edimburgo, mas gostaria de passar umas duas semanas por lá e visitar com mais tempo este País. Não sei se o conseguirei fazer...

Jóe disse...

Que bacana. Obrigado pelo passeio.
http:praxis.blogs.sapo.pt

Tink disse...

A EScócia tem desde sempre zonas muito pobres, despovoadas e com muito desemprego. Aberdeen beneficia da actual exploração de petróleo que criou muitos postos de trabalho bem pago. Mas é uma vida dura, pois os homens, sobretudo, passam muitos dias seguidos nas plataformas no mar. O turismo também ajuda, é claro. Se algum dia a Escócia se tornar independente renascerão os ódios ancestrais contra os ingleses.