sexta-feira, 27 de março de 2020

Também fui feliz em Ré [antídoto para o confinamento]


É Primavera. Seja ela capaz de por fim ao verme invernal.

Talvez o sítio que me vem mais depressa à ideia se puserem a questão "então não voltas a viajar mais ?" seja a ilha de Ré. Das duas vezes que lá estive, só lamento não ter podido prolongar a estada. O melhor sucedâneo de ir a Ré, será publicar aqui uma breve memória de quando a visitei.


Há actividade cultural ? Praticamente não. Há duas ou três formas de experimentar cultura - a arquitectura das vilas marinhas, o ecossistema da ilha, o modo de vida em ritmo brando; e há um ou dois festivais. Mas é sobretudo notável constatar como as malhas urbanas e as marinas se integram harmoniosamente com as salinas a a cobertura vegetal. Parte dessa integração realiza-se nas ruas estreitas reservadas a peões e ciclistas e bordadas de roses trémières, que a cada esquina oferecem uma hipótese de aguarela; a outra parte realiza-se nos portinhos onde alguma pesca e lazer se entrelaçam em frente das fachadas, azul (ou verde) das persianas e branco da cal. Uma rede de caminhos cicláveis entre prados e salinas, habitadas por várias espécies de pássaros, completam o cenário. À volta, mar, plano e vasto.


As salinas desta região servida pelo porto de La Rochelle tinham muita procura no tempo da Hansa; já desde o séc. XIII os navios da Liga vinham aqui trocar outras mecadorias (peles, cereais) pelo famoso sal de Rochelle.


Uma grande tranquilidade, banhada pelo sol, às vezes soprada pela ventania. Nas povoações, a mesma tranquilidade nas ruas sem trânsito.

As roses trémières dão às ruelas um colorido que é imitado pelas tintas de portas e janelas.

Saint-Martin-de-Ré, a 'capital'





Foi aqui que fiquei da primeira vez, em 2011, no Domaine de la Baronnie.

O porto de pesca de St. Martin



É difícil descrever o gosto de frequentar estas esplanadas. Por exemplo para um peixinho ou uma sobremesa, em ausência de ruído - apenas as cordas dos barcos a bater com o vento.



Mourat blanc, do Loire. Gulodice.

Mas Ars-en-Ré foi o top !

Café du Commerce, a dar para o porto.

iiih que saudades do café Florio.

Ars-en-Ré é a povoação mais bem preservada na ilha, com algum património e um labirinto de venelles (vielas) onde dá gosto passear sem destino.


A vila mais bonita. 'La Tour du Sénéchal' - épicerie et dégustation.


A inconfundível torre sineira, que se vê de toda a metade oeste da ilha

Portal da igreja de St. Étienne

Jogo da pétanque, quando e onde apetece.


É um destino de gente rica, classe alta, burgueses ? É. Mas o que isso significa é que não há cadeias de fast food, nem lojas de plástico asiáticas, nem centros comerciais, nem graffitis, nem bares de vida nocturna, nem garrafas de cerveja a juncar o chão. Ou seja, o turismo ainda respeita, não estraga, deixa respirar os locais. Em Ré ainda há vida.

La Flotte, a mais antiga



Crèmerie, Rue du Marché.

Um regalo para o olfacto e para a vista é uma ida ao mercado de La Flotte, todas as manhãs.





O recinto da feira.

O passeio marítimo, junto à praia urbana



São visita imperdível as ruínas da abadia de Notre Dame de Ré, entre campos de trigo e de papoilas, num terreno ajardinado de alecrim, tomilho e alfazema; o silêncio é impressionante, só o vento e os corvos num espaço vastíssimo. Chegar lá ao fim da tarde depois de meia hora de bicicleta é uma sensação única, de solidão apaziguadora, como se nos aproximássemos de um pacífico término, em adagio ma non troppo.


Data do séc . XII, e foi fundada por monges de Cister; mas as ruínas actuais, de estilo gótico, são mais recentes, do séc. XIV.


Sucessivamente saqueada e destruída por ingleses, por tropas na guerra dos 100 anos e pelos huguenotes, foi finalmente abandonada pelos monges no séc XVI.



Um momento mágico, em que um testemunho de atribulada História mais uma vez demarcou o tempo e o espaço.


Também há praia e mar; é bom estar por perto, sentir-lhe a presença, mas não frequentei. Para isso não vale a pena ir tão longe.





      Les jours de bonheur, comme cela passe vite!


domingo, 22 de março de 2020

Leituras e música - relatório de confinamento forçado



Reuni alguns livros para estes dias de quase-prisão domiciliária. Não me curam das dores de costas, antes pelo contrário, porque estar sentado tempo de mais é mau para a coluna. Mas ajudam a curar a neura e a voar para fora das grades do lar, quando de doce se torna amargo.


- Erebus, de Michael Palin, é um relato emocionante, detalhado e bem narrado da vida do navio que provavelmente mais feitos navais alcançou: viagem ao Pólo Norte, depois à Antártida via Tasmânia, com a descoberta da plataforma de Ross, regresso pelas Falklands, Terra do Fogo e de novo a Antártida; finalmente a heróica e trágica viagem pela Passagem do Noroeste onde sob o comando de Franklin sucumbiu ao gelo compacto. De pólo a pólo duas vezes, uma epopeia naval.

- Os 4 Quartetos de T.S. Eliot são leitura para toda a vida, como a obra de Borges. Nunca se acaba, nunca se leu tudo, é uma maré de poesia interminável.

Duas apostas arriscadas:
- Heureux qui, comme Hannibal, de Natale Ada: aventuras pelo mundo, ao estilo de Verne ou Swift.
- Os Leões da Sicília, de Stefania Auci, muito mal traduzido infelizmente (e com A.O.), é uma saga familiar ao longo do estimulante século XIX.

Finalmente, de Matt Gaw, Under the Stars. Dele já tinha lido - e gostei muito! - um semi-romance de semi-viagens, de canoa pelos rios do Reino Unido, onde conta as aventuras que viveu por dentro nos rios Severn, Wye, Waveney, Cam, Thames; agora vem contar, espero que com o mesmo engenho e riqueza sugestiva, jornadas de vida nocturna - não em bares, mas na natureza, sob as estrelas.

- Art North nº 5
Este número vale sobretudo pela notícia da exposição de Mark Edwards, artista escocês que criou um estilo único, como mostra a capa. Em breve publicarei sobre ele neste blog.

- Musées d'Europe, Figaro

Esta colecção já com vários anos sobre os museus da Europa, editada pelo Figaro, vem acompanhada de DVD. Livro e filme ajudam a percorrer museus, alguns onde nunca irei,  a partir de casa, muito melhor que os percursos em streaming.

Música: muita rádio clássica, e mais:
- CD de concertos para violocelo de Vranický e Stamitz


Evitando saturação, o programa é mais ou menos: leituras, culinária (refeições e bolos), música, sofá (sesta e TV) e eventualmente um DVD. Séries, de momento só sigo o Resident. À custa do Covid, vi um grande filme que não conhecia, muitíssimo bem feito, que sendo até certo ponto de SciFi - há uma outra Terra que se aproxima da nossa, onde vivem duplos de nós noutro espaço-tempo - tem uma cuidada e enxuta narrativa e situações tensas onde os personagens se definem com alguma densidade. O final está muito bom, coisa rara. Chama-se Another Earth (2011), é um filme independente (nota-se) de Mike Cahill.

Boa estada em... casa.



quarta-feira, 18 de março de 2020

Palazzo Quirinale em ano Rafael - com um abraço a Itália


Vi a Borghese, a Barberini, a Farnesini e a Medici - mas não visitei o Quirinal, mais um palácio-museu a pesar na lista de sítios que falhei. Agora, está na Scuderia em frente ao palácio (para ninguém ver, purtroppo) uma das exposições dedicadas a Rafael neste ano comemorativo.

Bem maior e mais rico que a Casa Branca, o Palácio Quirinal é moradia de imperadores. Desde a situação - no alto de uma das sete colinas, o Monte Quirinale - até às dimensões: 120 000 m2, um dos maiores palácios do mundo. Actualmente, é lá que trabalha o Presidente da República italiana.


Iniciado em 1593 por Ottaviano Mascherino, grandemente enriquecido por Carlo Maderno e Francesco Borromini (salões) e decorado por Guido Reni, foi sendo ampliado com novas estruturas e jardins até ao século XVIII. Foi residência papal, e depois dos reis de Itália.


Oferece também uma das mais panorâmicas vistas de Roma, do alto do terraço do Quirinal:

Terrazza di Napoleone

Na entrada, há sempre a Guarda de Honra; acede-se depois ao pátio interior desenhado por Mascherino.

A edificação original, agora Cortile d'Onore.

As salas e salões são umas 1200 (!), desde gabinetes de trabalho a salões de bailado. 

Sala Gialla

Salone dei Corazzieri (guardas de honra)

Sala di Augusto.

E assim por diante: sala das Audiências, sala dos Espelhos, sala de Hércules, salão de festas, sala dos tapetes de Lille...

Igualmente sumptuosa é a capela do palácio, a Capella Paolina:


Foi construída ao tempo de Paulo V Borghese pelo arquitecto Carlo Maderno, que fez a fachada da Basílica de S. Pedro no Vaticano.



A escadaria de Mascherino é um dos elementos mais notáveis.


Uma rara escadaria helicoidal:


Mascherino de Bolonha, também chamado Mascarino, foi o arquitecto inicial do Palácio.

Vertiginoso!

No edifício da Scuderia, do outro lado da Piazza del Quirinale, a exposição dos 500 anos sobre a morte de Rafael está temporariamente fechada por causa das medidas sanitárias excepcionais. 

Scuderie del Quirinale

O que se poderá ver quando reabrir :

'Ritratto di Baldassare Castiglione', rosto impressionante de vida.

'La Dona Velata', detalhe.

'Madonna d'Alba', detalhe (é um tondo).

'Madonna della Seggiola' (= cadeirinha), restaurada

Detalhe

Ninguém desenha rostos como Rafael!

Cabeça de Musa, estudo


                 Saudades de Itália !

https://www.artribune.com/arti-visive/archeologia-arte-antica/2020/03/la-grande-mostra-di-raffaello-alle-scuderie-del-quirinale-a-roma-riapre-online-ecco-come-vederla/