domingo, 21 de junho de 2020

[Ler e Reler] Voltar aos Infinitos de Banville, para variar da pequenez


Ando precisado de qualquer pensamento grande, Grande, tudo o que se vê e ouve é  tão pequenino... Veio ter-me às mãos por correio de fada (thanks, Tink!) uma rescensão da obra prima The Infinities de John Banville, no Vichy's Blog. Nada mais adequado: grande livro, grandes ideias, grande literatura.


Já tinha publicado no Livro uma abordagem aos Infinitos com alguns excertos; apetece-me - e é uma primeira vez - regressar com mais alguns, depois desta apresentação:

Adam Godley foi um cientista famoso mas agora está prostrado em coma; ou pelo menos os outros acham que ele está em coma, enquanto o próprio Adam está imóvel mas consciente, observa o que se passa à sua volta e consegue pensar.

O golpe de génio de Banville entra na forma de Zeus e Hermes, pai e filho, que descem a visitar Adam - ou será ele que imagina ser visitado pelos Deuses Gregos ?  Eles começam a intervir na vida da família criando peripécias interessantes, e em tom de brincadeira abordam-se coisas graves e problemáticas mais expectáveis numa tragédia.

A narração cabe ora a Hermes, ora a Adam, de forma um pouco caótica. Outras vezes é na terceira pessoa. Rex, o cão da família, também tem um papel especial, talvez seja ele quem vai mais fundo na observação dos humanos. Não é uma história linear, mas uma sucessão de parágrafos ora contemplativos, ora ruminativos ou descritivos, por onde temos de navegar sem bússula.

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A beleza do amanhecer
[fala Hermes, a abrir o livro]

Entre as coisas que arranjamos para conforto deles, a madrugada é a que melhor resulta. Quando a escuridão se dispersa no ar como fina e macia fuligem e a luz se espalha devagar desde oriente, todos menos os mais miseráveis humanos se reanimam. É um espectáculo que nós, imortais, apreciamos, essa pequena ressurreição diária, muitas vezes juntamo-nos nos baluartes das nuvens para os observar, os nossos pequenotes, quando se erguem para acolher o novo dia. Que silêncio se abate então sobre nós, o silêncio triste da inveja.

A natureza do Tempo

E depois há a questão do tempo. O que é, por exemplo, um instante ? Horas, minutos, segundos, mesmo estes são compreensíveis, pois podem ser medidos por um relógio, mas o que se quer dizer quado as pessoas falam de um momento, um instante - um triz - um tchisquinho ? São apenas palavras, claro, e no entanto estão suspensas sobre insondáveis profundezas. O tempo flui, ou é antes uma sucessão de quietudos - instantes - que se movem de tal forma velozes que nos parecem suceder numa onda que não quebra ? Ou haverá apenas uma grande quietude que se estende para todos os lados, em todas as direcções em que nos movemos, como nadadores que afrontam um infinito e desolado oceano ? E porque é que varia? Porque será o tempo de uma dor de dentes tão diferente do tempo de chupar um rebuçado, um dos muitos rebuçados que com o tempo vão causar mais outra cárie ? Há luzes no céu, agora, que partiram das suas fontes há um bilião de anos. Mas existem luzes? Não, apenas luz, fluindo incessantemente, movendo-se, a cada instante.

Rex the dog
[fala Hermes]

Rex, o cão, é um astuto observador das maneiras dos seres humanos. (...) 
Há algum problema com eles, porém, com todos eles. (...) Têm medo de qualquer coisa, qualquer coisa que está sempre presente, embora finjam que não. É a mesma coisa para todos, a mesma coisa enorme e terrível, excepto para os mais novos, embora até nestes também por vezes Rex imagine detectar os olhos momentâneamente arregalados, um súbito e horrorizado despertar. Ele apercebe-se desta secreta e aterradora consciência, subjacendo a tudo o que eles fazem. Mesmo quando estão felizes há uma lacuna nessa felicidade. O riso deles tem uma nota estridente, como se não estivessem apenas a rir mas a chorar também, e quando choram os soluços e lamentos são desproporcionais, como se aquilo que supostamente os angustiou fosse só pretexto e a angústia brotasse antes da outra coisa assustadora que conhecem mas tentam ignorar. Têm ar de quem está sempre a olhar para trás - não, de quem não se atreve sequer a olhar, com medo de ver o que lá está, a presença ineluctável que lhes pisa os calcanhares.

Ao ar livre
[Adam, em coma]

A luz do dia parece hesitar por um momento antes de entrar. Ofuscado, fecho os olhos com força, e no avesso das pálpebras, o pós-fulgor cria formas instáveis, mais escuras sobre a escuridão, como borrões de tinta preta a rebentar lentamente em água já suja. No entanto, emociona-me o fulgor inusual, da mesma maneira que me emocionara um momento antes com os gestos dançarinos da minha filha. Quando chegar a hora, e já não deve faltar muito, quero morrer imerso em luz, como uma velha árvore que se alimenta pela derradeira vez da radiância do mundo. Nestes últimos dias - quantos ? - com as cortinas corridas, senti que estava num enorme espaço escuro onde portas distantes se fecham lentamente, uma a uma. Não as ouço fechar, mas sinto a alteração no ar, como uma sucessão de longos e lentos assopros, dolorosamente recebidos. (...) Mas não quero respirar pela última vez neste quarto. (...) Quero estar noutro lado. Quero morrer ao ar livre - será que isso pode ser combinado ? Sim, numa enxerga algures, na relva, sob as árvores, ao suave cair da noite, isso seria uma dádiva, uma derradeira benção.

                                                                                                                                     [Tradução minha; está editado em Português pela ASA]

1 comentário:

SilverTree disse...

Acho que encontrei a minha próxima leitura. Obrigada!