quinta-feira, 4 de março de 2021

A mais famosa das Allemandes - audição comparada da BWV 828


Numa peça para piano com menos de dez minutos, uma diferença de três ou quatro minutos é enorme, colossal. Mas é o que separa Glen Gould de Murray Perahia ou Sokolov na Allemande da Partita nº4, BWV 828 de Bach. Alguma está errada, alguma é obviamente uma 'má' interpretação? Não. Mas torna-se evidente aqui o grau de liberdade da interpretação, a contribuição do intérprete para a obra que escutamos. Nem todo o génio é de Bach portanto, há um traço que pode ser bem forte deixado, neste caso,  pelo pianista.

Uma Allemande é uma dança instrumental barroca, muitas vezes parte de uma sequência que pode incluir Courante, Gigue, Bourée, Sarabande, etc. Foi prática comum de compositores como Couperin, Rameau, Purcell, Bach ou Handel.  Na Partita nº 4 de Bach, o início é uma Abertura à Francesa no estilo da corte de Louis XIV, pomposo como uma procissão cerimonial, a que se segue uma fuga contrapuntística em três partes que parece já transitar para a dança.

A Allemande vem logo depois, num tempo muito fluído que permite por um lado ouvir as progressões harmónicas sob as ornamentações da melodia; e por outro lado esse contraponto de cadências curtas da mão esquerda exerce um controle sobre os longos delírios das frases melódicas, que esvoaçam constantemente numa grande variedade de ritmos. 

Começo com duas interpretações modelo, que são as minhas favoritas: Maria Tipo, já lá vão 30 anos, e Murray Perahia, talvez o melhor das últimas décadas. Subtilidade nos dedos, evasão e entrega, e a capacidade de nos fazer sentir o que sentem. Ah, e as pausas, o silêncio!

Maria Tipo, 8:42

Murray Perahia, 9:20
Que grande interpretação !

Dentro dos 8 - 10 minutos há muitas outras boas gravações, como a de Ângela Hewitt (9:24).

Vamos aos extremos. Glen Gould baixara para 6:25 na sua interpretação tardia ao vivo, uma coisa estranha, com acentuações fora da norma, parece um autómato avariado, ou um génio, conforme.
Glen Gould 6:25


Nelson Freire, que não nasceu para tocar Bach, ainda desce mais para  6:11 minutos , mas é um desastre:
Bach 'sempre a andar', missão cumprida.

No outro extremo, lentidão, um dos piores é Sokolov. Não consegui uma gravação online, fiquem com David Fray nuns exasperantes 11.37. 


A diferença para Gould é de quase 5 minutos, metade do tempo médio 9:30 ! Só pode estar errado.

Agora para contrastar, no cravo, com 6:22 (tal como Glen Gould); naturalmente, menos meditativo.  Há quem passe dos 10 minutos mesmo ao cravo.



Tudo o que sucede com a Allemande sucede com o resto da Partita, aliás com todas as Partitas de Bach. Trabalho de casa !



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