Independentemente de tudo o que não concordo no que George Steiner escreve, ele é com Fukuyama o pensador mais marcante da passagem do século. Não concordo com a admiração e referência que Steiner atribui à filosofia germânica (Nietzsche, Hölderlin, Hegel, Heidegger, Schopenhauer, Kierkegaard) que antes me parece a origem de toda a grande tragédia alemã e europeia do século XX; e não concordo com o gosto musical de Steiner, admirador de Wagner nec plus ultra e dos seguidores do horrendo Adorno - Boulez, Messiaen, Ligeti, Nono, Berio, toda a escória musical do atonalismo e serialismo, isso sim apenas ruído.
Mas quando Steiner fala da herança europeia e da superioridade da cultura clássica tendo a concordar, mesmo que ele exagere no desprezo pela cultura anglo-americana do pós-guerra, de que nitidamente não percebe nada. Nestas entrevistas que concedeu a Ramin Jahanbegloo diz a certo ponto:
' Tenho a convicção íntima de que certas ordens de especulação intelectual só podem encontrar-se num mundo limitado no qual os escravos asseguram aos abastados a subsistência necessária bem como o ócio, que lhes permite discutirem as secções cónicas ou a álgebra dos números irracionais na Academia. Com efeito, o privilégio insensato que a Grécia conheceu consistia nesse luxo de um pensamento político baseado na escravatura e na redução da mulher a um estatuto de inferioridade. Tudo o que é nosso foi pensado durante esse breve período da história humana; somos filhos desse mundo. Depois dele, o nosso conhecimento só muito pouco enriqueceu. A nossa ciência, as nossas matemáticas são um banal prolongamento das dos Gregos. Schelling dizia que, quando pensamos, somos todos gregos. Talvez sejamos '"todos" * hebreus quando rezamos ou sofremos, mas o pensamento, concebido de modo especulativo, formal e plástico, vem-nos dos gregos. Ser professor é ser grego. Receber alguém numa universidade ou numa academia é ser ateniense. '
Isto eu subescrevo, atento e agradecido; senti-me grego e ateniense algumas vezes. O mais nobre pensamento da humanidade foi obtido em condições do que hoje seria repugnante injustiça social. Argumento a sustentar portanto que a injustiça social nada tem a ver com o nível de cultura e civilização como pretende o socialismo clássico.
Quando pensamos somos todos gregos.
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*aspas minhas; não sou nada hebreu.
5 comentários:
Não podia concordar mais com tudo isto, Mário. E também nunca consigo deixar de voltar à Grécia.
E não lhe arranha nada ter sido tudo construído sobre um estatuto de mulher menorizada e calada, além do trabalho escravo? Será o Homem na sua maior Grandeza tão reles e vil que precise de uma sociedade fortemente desigual para criar as suas melhores obras?
E portanto: será a Democracia apenas capaz de produzir mediocridade? Nem squer foi capz, parece, de reflectir sobre o assunto.
Arranha e muito. Tal como me entristece e arranha que as democracias tendam para a mediocridade e a auto-destruição, apesar de serem dos nossos bens mais preciosos. Gostava de ter, não digo respostas, mas pelo menos pistas de compreensão - o que é bem difícil, devido a essa incapacidade, que o Mário tão bem apontou, da democracia que no fim (?) perde até a capacidade de reflectir sobre o assunto.
O mais próximo que alguma vez consigo disso geralmente está na literatura (e em alguma filosofia desassombrada e lúcida, mas são cada vez menos). No Musil, por exemplo, no "Homem Sem Qualidades", a que volto uma e outra vez sempre que penso sobre estes assuntos. Mas também esse tipo de literatura e filosofia "lúcidas" tendem a ser esquecidas (quando não "apagadas") pela democracia no seu pior. Lê-las oferece consolo ao leitor meio resignado no seu cadeirão (contra mim falo), mas não sei lhes podemos pedir mais que isso.
Não tarda seremos leitores resignados no seu cadeirão, a olhar à janela para o espectáculo do mundo, como Pessoa. Cada vez mais me parece que é para isso que os pensadores lúcidos nos conduzem, já não há Gregos nem nada de novo a dizer.
(também posso ser eu a ser velho do restelo; é o mais certo)
Velho do Restelo: têm-me acusado muito do mesmo :) (Enquanto não nos tirarem os livros, bom, aproveitemos.)
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