quarta-feira, 17 de março de 2021

George Steiner sobre a herança Grega


Independentemente de tudo o que não concordo no que George Steiner escreve, ele é com Fukuyama o pensador mais marcante da passagem do século. Não concordo com a admiração e referência que Steiner atribui à filosofia germânica (Nietzsche, Hölderlin, Hegel, Heidegger, Schopenhauer, Kierkegaard) que antes me parece a origem de toda a grande tragédia alemã e europeia do século XX; e não concordo com o gosto musical de Steiner, admirador de Wagner nec plus ultra e dos seguidores do horrendo Adorno - Boulez, Messiaen, Ligeti, Nono, Berio, toda a escória musical do atonalismo e serialismo, isso sim apenas ruído.

Mas quando Steiner fala da herança europeia e da superioridade da cultura clássica tendo a concordar, mesmo que ele exagere no desprezo pela cultura anglo-americana do pós-guerra, de que nitidamente não percebe nada. Nestas entrevistas que concedeu a Ramin Jahanbegloo diz a certo ponto:

' Tenho a convicção íntima de que certas ordens de especulação intelectual só podem encontrar-se num mundo limitado no qual os escravos asseguram aos abastados a subsistência necessária bem como o ócio, que lhes permite discutirem as secções cónicas ou a álgebra dos números irracionais na Academia. Com efeito, o privilégio insensato que a Grécia conheceu consistia nesse luxo de um pensamento político baseado na escravatura e na redução da mulher a um estatuto de inferioridade. Tudo o que é nosso foi pensado durante esse breve período da história humana; somos filhos desse mundo. Depois dele, o nosso conhecimento só muito pouco enriqueceu. A nossa ciência, as nossas matemáticas são um banal prolongamento das dos Gregos. Schelling dizia que, quando pensamos, somos todos gregos. Talvez sejamos '"todos" * hebreus quando rezamos ou sofremos, mas o pensamento, concebido de modo especulativo, formal e plástico, vem-nos dos gregos. Ser professor é ser grego. Receber alguém numa universidade ou numa academia é ser ateniense. '

Isto eu subescrevo, atento e agradecido; senti-me grego e ateniense algumas vezes. O mais nobre pensamento da humanidade foi obtido em condições do que hoje seria  repugnante injustiça social. Argumento a sustentar portanto que a injustiça social nada tem a ver com o nível de cultura e civilização como pretende o socialismo clássico.

Quando pensamos somos todos gregos. 


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*aspas minhas; não sou nada hebreu.

5 comentários:

SilverTree disse...

Não podia concordar mais com tudo isto, Mário. E também nunca consigo deixar de voltar à Grécia.

Mário R. Gonçalves disse...


E não lhe arranha nada ter sido tudo construído sobre um estatuto de mulher menorizada e calada, além do trabalho escravo? Será o Homem na sua maior Grandeza tão reles e vil que precise de uma sociedade fortemente desigual para criar as suas melhores obras?

E portanto: será a Democracia apenas capaz de produzir mediocridade? Nem squer foi capz, parece, de reflectir sobre o assunto.

SilverTree disse...

Arranha e muito. Tal como me entristece e arranha que as democracias tendam para a mediocridade e a auto-destruição, apesar de serem dos nossos bens mais preciosos. Gostava de ter, não digo respostas, mas pelo menos pistas de compreensão - o que é bem difícil, devido a essa incapacidade, que o Mário tão bem apontou, da democracia que no fim (?) perde até a capacidade de reflectir sobre o assunto.
O mais próximo que alguma vez consigo disso geralmente está na literatura (e em alguma filosofia desassombrada e lúcida, mas são cada vez menos). No Musil, por exemplo, no "Homem Sem Qualidades", a que volto uma e outra vez sempre que penso sobre estes assuntos. Mas também esse tipo de literatura e filosofia "lúcidas" tendem a ser esquecidas (quando não "apagadas") pela democracia no seu pior. Lê-las oferece consolo ao leitor meio resignado no seu cadeirão (contra mim falo), mas não sei lhes podemos pedir mais que isso.

Mário R. Gonçalves disse...

Não tarda seremos leitores resignados no seu cadeirão, a olhar à janela para o espectáculo do mundo, como Pessoa. Cada vez mais me parece que é para isso que os pensadores lúcidos nos conduzem, já não há Gregos nem nada de novo a dizer.

(também posso ser eu a ser velho do restelo; é o mais certo)

SilverTree disse...

Velho do Restelo: têm-me acusado muito do mesmo :) (Enquanto não nos tirarem os livros, bom, aproveitemos.)