terça-feira, 6 de abril de 2021

´Filosofando': A Utopia Feliz de Rainer Marie Rilke


Não consigo imaginar conhecimento mais sagrado
do que este:
que temos de tornar-nos iniciadores.
Alguém que escreve a primeira palavra a seguir a um
travessão
secular.

Grande é esse travessão secular, se não milenar. Nas suas 'Notas sobre a Melodia das Coisas', Rilke deseja um utópico Renascimento completo do Homem em harmonia com o mundo: aspiração muito actual, numa altura em que o mundo parece mais uma dissonante cacofonia.

Simone Martini e Lippo Memmi, Anunciazone, Florença, 1333

"Compara uma pintura sobre fundo dourado do Trecento com uma das inúmeras composições mais tardias dos antigos mestres italianos, onde as figuras se reúnem numa Santa Conversazione diante da paisagem luminosa no ar límpido da Umbria. O fundo dourado isola cada uma dessas figuras, mas a paisagem resplandece atrás delas, como uma alma comum, da qual extraem o seu sorriso e o seu amor."

Marco Basaiti, Santa Conversazione

Muitas percepções certamente mudaram entre os tempos medievais e o novo humanismo nascido do Renascimento. Rilke destaca na Arte a relação figura/fundo em paralelo com a realidade Homem / Mundo. Nas pinturas sobre fundo dourado, as figuras, cercadas por um aro, encaixadas em janelas ou separadas por colunas, não comunicam verdadeiramente; só as une aquela luz brilhante do fundo, a lembrar a Radição Cósmica de Fundo que emana do Universo, provavelmente apercebida como a Fé ou o Divino.

Já em Basaiti (séc. XV-XVI), Rilke observa uma outra proximidade, cuja fonte estaria na paisagem luminosa de fundo, a "alma comum". É uma ideia bonita, a de a Humanidade ter uma alma comum, mais uma vez uma mística feliz desmentida pelos tempos.

"Se os santos de Marco Basaiti tivessem algo a confidenciar uns aos outros para além da sua sacra proximidade lado a lado, não estenderiam as suas mão finas e suaves na frente do quadro onde habitam. Recuariam, tornando-se cada vez mais pequenos, até ao fundo dos campos ouvintes, e ir-se-iam encontrar atravessando minúsculas pontes."

A sacra proximidade não basta, portanto; seria preciso que os homens fossem mais modestos, cientes da sua pequenez, para poderem estabelecer "pontes", como hoje se diz, nesse caldo luminoso comum que são os campos que escutam e o ar límpido.

" E nós somos como frutos. Estamos suspensos lá no alto, em ramos estranhamente emaranhados, fustigados por muitos ventos. O que possuímos é a nossa maturidade, doçura e beleza. Mas a força que produz tudo isso corre num único tronco a partir de uma raiz que se propagou e se estende por mundos em todos nós. E, se quisermos dar testemunho da sua força, cada um de nós tem de a utilizar no sentido da maior solidão. Quanto mais forem os solitários, mais solene, pungente e poderosa é a sua comunidade."

'Cada um de nós tem de a utilizar no sentido mais solitário'. Ah Rilke, regresso a um novo individualismo, 'superior' embora, pois a melodia da vida, a melodia em toda a plenitude, é captada apenas pelos mais solitários.

Pois assim seja, a felicidade só se atinge em solidão.


------------------------------------------------
[traduções minhas a partir das edições francesa e inglesa] 
[Grato à mão amiga 💗 que insistiu neste livro de Rilke]

Sem comentários: