quarta-feira, 21 de abril de 2021

Não, não é ainda medo. É o derramar da mediocridade. [Rafael Guillén]


Rafael Guillén é um poeta difícil de encontrar. Neste poema, parece que fala por mim, ou eu por ele. Tão actual que até dói.

Y la mediocridad, como una lava
caliente, derramada
sobre el trigo, y la voz, y las ideas.


       Medo, não é. Talvez uma bruma alta,
       a possibilidade do medo, o muro
       que pode desabar, porque é certo
       que por detrás está o mar.

       Medo, não é. O medo tem um rosto,
       é exterior, concreto,
       como um fuzil, um aloquete,
       como um menino que sofre,
       como o negrura escondida
       em todas as bocas dos homens.
       Medo, não. Talvez só o estigma
       dos filhos do medo.

       É uma apertada rua, interminável
       com todas as janelas às escuras.
       É um cordel de mãos viscosas,
       amáveis, sim, não amigas.
       É um pesadelo
       de horripilantes e corteses ritos.

       Medo, não é. O medo é uma alta portada.
       Estou a falar aqui de um labirinto
       de portas entreabertas, com supostas
       razões para ser, para não ser,
       para classificar a desventura
       ou a ventura, o pão, ou um olhar
       -- ternura e medo e frio -- pelos filhos
       que crescem. E o silêncio.
       E as cidades cintilantes, vazias.
       E a mediocridade, como uma lava
       quente, derramada
       sobre o trigo, e a voz, e as ideias.

       Não é medo, não.
       O medo a sério ainda não chegou.
       Mas há-de vir.
       É a consciência dúbia
       de que a paz também é movimento.
       E digo isto em voz alta e receoso.

       E não é medo, não. É a certeza
       de que estou a jogar, numa só carta,
       o pouco que pude empilhar,
       talhe a talhe, para os meus companheiros homens.


                                                             Rafael Guillén (Granada, 1933 - )


Nota: de momento é o que tenho a dizer para o 25 de Abril

1 comentário:

SilverTree disse...

É oficial, Mário: é o meu "curador" favorito de poesia, muito à frente de qualquer outro concorrente. E que poema. Obrigado.