Para morador urbano, não estou muito mal servido de janelas, é verdade. Note-se que as fotos foram tiradas com o vidro fechado.
Choupos à frente...
- NUM GRÃO DE AREIA
O MUNDO INTEIRO VER -
Também Viviane Hagner voltou à Casa, agora com o empolgante concerto para violino de Sibelius. A violinista ficou conhecida pelas gravações de conceros de Vieuxtemps, que são virtuosísticos quanto baste.
Tanto quanto apurei, dedica mais tempo ao ensino que a concertos, mas na CdM exibiu à fartura as qualidades técnicas - não se poupou em passagens difíceis e foi sempre intensamente emotiva em pianíssimos ou em mudanças de ritmo ou de tensão. O 2º andamento foi um momento comovente de expressivo lirismo, muitíssimo bonito.
Nunca tinha ouvido este concerto tão bem interpretado, só por isso valeu a pena. Perante a aclamação da assistência, Viviane tocou como encore uma obra de ... Tárrega! Transcrita de guitarra para violino, claro. Bem difícil.
Depois veio a 5ª de Sibelius, uma obra genial, uma de duas ou três entre as 8 que Sibelius escreveu. Nunca me canso de a ouvir, de tal modo a orquestração é rica e variada, usando todos os naipes e secções, alternando ritmos - é também bastante visual se atentarmos à espacialidade orquestral no seu todo. Volmer deve tê-la dirigido em palco já centenas de vezes, fez com que a Orquestra da CdM se elevasse ao seu melhor, muito bem coordenada e quase deslumbrante; apenas me pareceu que poderia ter sido um pouco mais incisivo, dinâmico, aqui e ali, havendo momentos em que a música soava como estando em piloto automático (sem prejuízo da execução técnica).
18 de Junho
Arvo Volmer direcção
Viviane Hagner violin
Sibelius
- Concerto para violino e orquestra
- Sinfonia n.º 5
Não terminar sem música ! Sarah Chang no Adagio do Concerto.
Dou cada vez mais comigo a falar e a escrever como estivesse sozinho aqui, como se mais ninguém viesse ler. Ora ainda não chegamos a esse ponto; o registo de visitas nos posts mais recentes é
30-46-27-42-37-52-44-40-31-39-44-43-38-33-34-44-33-34-36-38-35-52-69-39-37-47-41-49-26-35-28-31-27-43-28-31-32-37-40-36-29-36-28-25-40-29-36-36-30-33-40-32-33-34-32-26-32-66-23-57-25-37-41-31
Se não me engano, os valores médio e mediano andam pelo 36. Não existe quelquer lógica na diferença de popularidade, a não ser algum nome sonante no título. Alice Mary Smith, compositora, teve o valor máximo nesta amostra. O total diário de visualizações em todos os posts está abaixo de 100 (cerca de 70), com picos máximos na casa dos 130.
[ E agora que toda a gente farta de números da pandemia já deve ter deixado de me ler, perdi também 90% desses poucos]
Mas o que quero constatar é que ainda não falo para as paredes, ou neste caso, para o écran, sem olhinhos do lado de lá a retribuir. São pouco mais de 30 pares de olhinhos, mas ainda fazem toda a diferença. E se estou grato a esses habitués, ainda mais feliz me fazem os outros extra 30 pares de olhinhos, possivelmente estrangeiros, que aqui caem talvez por mero acaso. O meu alvo são as 40 visualizações, é o número que me deixa feliz; no mundo globalizado com 4,7 milhares de milhões de potenciais navegantes, isso perfaz 0,000 000 85% de share, número que me reduz a uma confortável e bem-aventurosa irrelevância.
Mas não me reduz a falar para as paredes. Apenas a conversar, olhos nos olhos, com pessoas que gostaria de conhecer.
Vem aí, a seguir, mais outra improvável viagem de exploração ao Ártico, caros amigos. Mas entretanto podem pedir: livros, poesia, cidades, museus, viagens, arquitectura, história, e qualquer tipo de coisas inúteis. Às ordens.E para encerrar, um tesouro; escrevia Emily Dickinson :
My friend must be a Bird—
Rafael Guillén é um poeta difícil de encontrar. Neste poema, parece que fala por mim, ou eu por ele. Tão actual que até dói.
Medo, não é. O medo tem um rosto,
é exterior, concreto,
como um fuzil, um aloquete,
como um menino que sofre,
como o negrura escondida
em todas as bocas dos homens.
Medo, não. Talvez só o estigma
dos filhos do medo.
É uma apertada rua, interminável
com todas as janelas às escuras.
É um cordel de mãos viscosas,
amáveis, sim, não amigas.
É um pesadelo
de horripilantes e corteses ritos.
Medo, não é. O medo é uma alta portada.
Estou a falar aqui de um labirinto
de portas entreabertas, com supostas
razões para ser, para não ser,
para classificar a desventura
ou a ventura, o pão, ou um olhar
-- ternura e medo e frio -- pelos filhos
que crescem. E o silêncio.
E as cidades cintilantes, vazias.
E a mediocridade, como uma lava
quente, derramada
sobre o trigo, e a voz, e as ideias.
Não é medo, não.
O medo a sério ainda não chegou.
Mas há-de vir.
É a consciência dúbia
de que a paz também é movimento.
E digo isto em voz alta e receoso.
E não é medo, não. É a certeza
de que estou a jogar, numa só carta,
o pouco que pude empilhar,
talhe a talhe, para os meus companheiros homens.
Rafael Guillén (Granada, 1933 - )
Nota: de momento é o que tenho a dizer para o 25 de Abril
Este memorial não foi erigido e inaugurado com pompa por nenhuma instituição ou ministério. Foi surgindo da mão das pessoas, sob a trágica inspiração de uma avalanche colectiva de mortes. Vamos a caminho dos três milhões, desde a 2ª Grande Guerra nada se lhe compara.
Se há Arte Popular, é isto: belo e feito pelo povo de Londres. É uma parede ao longo do passeio fluvial do Tamisa, na margem oposta ao Parlamento.
Sombras, que vão lembrar sempre o que foram os miseráveis anos 20 do século.
Anselm Kiefer inspirou-se desta vez no Campo do Pano de Ouro (Camp du Drap d'Or), local do encontro de reis em Junho de 1520: Henrique VIII da Inglaterra e Francisco I da França reuniram na costa francesa, um pouco a sul de Calais, com o objectivo de estreitar os laços de amizade, em consequência do tratado anglo-francês antes assinado. A guerra voltaria ... no ano seguinte.
Esse encontro foi celebrado num quadro do séc. XVI (~1545), poucos anos depois:
Afirma Kiefer que o título não explica a exposição, é antes uma 'alusão'. A História é um dos materiais que usa, como o gesso na escultura ou a cor na pintura. Assim como usa mitos e metáforas dos Evangelhos.
Por outro lado, em cada quadro há referências literárias. A poesia de Paul Célan está presente, há muito que é recorrente em Kiefer.
Des coeurs et des esprits
Naissent les épis de la nuit,
et un mot, prononcé par des faux,
les incline vers la vie.
From Hearts and Brains
The Stalks of Night are Sprouting,
And one Word, spoken by Scythes,
Inclines them to Life.
[baseado nas notas da Galeria]
Abre com The Field of the Cloth of Gold / Camp du Drap de l'Or
Segue From Hearts and Brains the Stalks of Night are Sprouting
Leituras, música, e mais, para um Inverno pandémico. Natais há muitos, se neste vai faltar ambiente de festa teremos sempre os afectos, as conversas, decorações, e ofertas. Os deuses dormem, o Pai Natal hiberna.
LIVROS
Fifty words for snow, Nancy Campbell, 2020
Poems to save the world with, Chris Riddell, 2020
No mesmo registo de livro-objecto que dá gosto folhear, é uma recolha de poemas que inclui muitas obras primas intemporais e ilustrações do autor. Stevenson, Dryden, Dickinson, Carroll, Yeats, Whitman... e alguns do próprio Riddell, um deles alusivo à pandemia, que começa assim
I sat beneath the May moon last night
and missed my life,
in silver and shadow with
a distant trundling of trains
going nowhere.
El Infinito en un junco, Irene Vallejo
Por favor, não queiram a tradução portuguesa, feia, infectada de gralhas no pior do danado A.O. 90! Mau serviço da Bertrand. Ainda estou à espera da edição francesa, porque o meu castelhano é muito deficiente, fico muitas vezes emperrado em palavras ou expressões.
Coisas mais sérias:
A máquina pára e outros contos, E. M. Forster, 2020
Destacado e nítido, antologia de Fernando Pessoa, por Miguel Almeida
Mais uma, mas talvez a melhor ! Excelentes as escolhas, algumas que nunca antes lera, assim é um gosto a nossa língua e um pensamento rebelde no melhor sentido. Parabéns, Miguel Almeida e Manufactura.
Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas-noites.
E a minha voz contente dá as boas-noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, sem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.
MÚSICA CLÁSSICA
Como cada vez há menos edições novas em CD, a escolha é limitada. Este ano fiquei rendido a Francesco Piemontesi e à sua gravação dos Concertos para Piano de Mozart, com a Scottish Chamber Orchestra e Andrew Manze:
O que piano e orquestra produzem é uma revelação, quase como se ouvisse estes concertos pela primeira vez.
Ode for St Cecilia Day, Handel, pelos Dunedin Consort
OUTRAS MÚSICAS:
Aqui não tenho dúvidas em recomendar 'Shiver', o novo Jónsi , leader dos Sigur Rós a solo. Estranhas atmosferas, uma cosmologia sonora delirante, entre o sonho e o pesadelo. Um cheirinho:
Exhale, do álbum Shiver
OUTRAS COISAS
Oxímetro de dedo
Threshold, by R.S. Thomas
I emerge from the mind’s
cave into the worse darkness
outside, where things pass and
the Lord is in none of them.
I have heard the still, small voice
and it was that of the bacteria
demolishing my cosmos. I
have lingered too long on
this threshold, but where can I go?
To look back is to lose the soul
I was leading upwards towards
the light. To look forward? Ah,
what balance is needed at
the edges of such an abyss.
I am alone on the surface
of a turning planet. What
to do but, like Michelangelo’s
Adam, put my hand
out into unknown space,
hoping for the reciprocating touch?
Ronald Stuart Thomas, 1983
[Poeta do País de Gales, um dos maiore do séc XX]