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terça-feira, 2 de abril de 2024

Caleta Tortel, na costa do Pacífico a leste da ilha Wager (de má memória)

- Coisa rara aqui, uma viagem muito meridional, a 47º Sul -

Em estreia no Livro de Areia, uma visita à Patagónia Chilena. É um dos locais mais distantes da Europa, de acesso demorado, notável pela sua espantosa natureza, ora selvagem, ora repousante. 

Desde há anos, no final do séc. XX, se tornou famosa a Carretera Austral, a estrada chilena CH-7 que vai para sul o mais longe possível - até ao lago O'Higgins -, passando por algumas das paisagens fabulosas da Patagónia na região de Aysén, entre o Perito Moreno e a costa do Pacífico.

Carretera Austral CH-7 - ainda hoje nãp pavimentada.

Bordejando o rio Baker 

O final da Ruta CH-7 é por enquanto no cais lacustre de Villa O'Higgins:

Ainda nem chegamos aos 49º S de latitude. A partir daqui só continuando de barco, e pode-se navegar até ao distante Estreito de Magalhães, ou mesmo até ao temível Cabo Horn. 


Caleta Tortel fica num desvio da Carretera Austral, a sul da cidade de Cochrane, região de Aysén.

Entre o Perito Moreno e o Pacífico.

Rodeada de rio e mar (rio Baker e Golfo de  Peñas), entre encostas florestadas, o enquadramento de Tortel é fenomenal. 


O desvio para Tortel é pela estrada X-904, percorrendo a margem do grande rio Baker.

Esta ligação rodoviária só foi concluída em 2003: antes disso, o acesso só era possível de avioneta ou de barco. 

Caleta Tortel ainda está longe de ser Antártica; fica a 47º S, na foz do rio Baker, o maior rio do Chile. É de fundação recente, e tem pouco mais de 500 habitantes.

Caleta Tortel é uma aldeia palafítica, ao longo da margem esquerda do Baker.  Todas as casas são em madeira de cipreste. Não há ruas, todas as deslocações se fazem por passadiços sobre estacas e escadarias em tábuas de cipreste. 

A cor azul-turquesa das águas deve-se a sedimentos de origem glaciar.




Plataformas, pontes e escadas interligam as habitações e o cais. Há ainda algumas 'plazas' dispersas, algumas cobertas, para descanso ou lazer.

Plaza San Pedro

Plaza Elicura

São quilómetros de passadiços, uns pela margem do lago e outros mais acima , subindo ou descendo a encosta. 


Fundada há apenas algumas décadas como base para a indústria madeireira local, Tortel está rodeada de uma extensa floresta de ciprestes.

O chamado Cipreste de Las Guaitecas, endémico, é a conífera mais austral do planeta. 

Casa de la Cultura

https://www.tortel.cl/tag/casa-de-la-cultura/

Ciclos de cinema, ateliers de trabalho artesanal em madeira, têxteis, oficinas de luthier, festivais de música (clássica, folclórica) , apresentação de livros, reuniões...


Teatro de Marionetas

Subindo de Tortel ao ponto alto mais próximo, tem-se uma vista alargada da foz do rio Baker, que desagua no Pacífico entre múltiplas ilhas e ilhotas do arquipélago da Patagónia.

Em direcção ao Oceano Pacífico, para poente, encontra-se o Golfo de Peñas e o Archipiélago Guayaneco ; é um território inóspito, a Norte da entrada para o Estreito de Magalhães.


O arquipélago é formado por duas ilhas sinistras, a ilha Wager e a ilha Byron. Chuvas ou nevões torrenciais sucedem-se ao longo do ano, os mares quase permanentemente revoltos sob furiosas rajadas de ventos de oeste.

Uma costa selvagem propícia a naufrágios.

ilha Wager é uma sucessão de terras altas de barrancos. cumes e promontórios. A costa é agreste, e no interior alternam floresta, pântanos e rocha nua, canais e poços, muitos ainda mal mapeados e nunca visitados.


Numa destas praias desenrolou-se a tragédia da HMS Wager.

Mount Anson, o cume mais alto da ilha Wager.

Porque é a Ilha Wager de má memória? Porque em 1741 ali encalhou e naufragou a fragata HMS Wager, e na tragédia seguiu-se um motim dos marinheiros sobreviventes contra os oficiais do navio, história que se tornou famosa , "viral" como se diz agora, narrada em muitos artigos e livros e diversas opiniões, representada em quadros e gravuras. Fez-se também já um filme, e vai agora haver outro, de Scorcese e com Di Caprio !

O naufrágio do HMS Wager, gravura de 1809

Era o ano de 1741, a Inglaterra em guerra com a Espanha por causa do negócio na Américas, sobretudo o ouro do Peru e o tráfico de escravos; a HMS Wager foi enviada numa frota de 6 navios com a missão secreta de causar danos aos Espanhóis, em terra e no mar, tomando, afundando ou queimando todos os navios inimigos que encontrassem. 

Durante uma tempestade ao largo do Cabo Horn, perdeu-se das outras cinco e foi à deriva para Norte pela costa chilena. Tudo correu mal: de novo sob um furacão, a Wager encalhou nos mares revoltos do Golfo de Peña, os marinheiros em desespero revoltaram-se e assaltaram as reservas de comida e álcool; completamente ébrios, desataram a lutar uns contra outros enquanto o navio se desfazia e afundava. 

Os oficiais e parte da tripulação conseguiram escapulir-se nos barcos salva-vidas para a ilha de Wager, alguns como John Byron (avô do poeta) para a ilha vizinha; todos os 140 que sobreviveram ao naufrágio ficaram vários meses na ilha deserta, cada vez mais debilitados ao frio e à fome; 81 amotinados construíram uma jangada e após 100 dias em mar bravio, 29 conseguiram alcançar a costa do Brasil. Os que tinham ficado na ilha foram resgatados por indígenas que ali passaram. 

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Abundam na geografia local nomes de origem inglesa - Byron, O'Higgins, Cochrane, Fitz-Roy. Porquê ? Primeiro, foram muitas as expedições britânicas que ali passaram, ou dobrando o Cabo Horn, ou atravessando pelo Estreito de Magalhães, e aproveitavam para ir dando nome a elementos geográficos marcantes - montes, ilhas, baías e golfos, glaciares.  

Houve também a partir do séc XVIII, e mais ainda na época vitoriana entre 1810 e 1914, um grande surto de emigração britânica (mais de 50 000) para o Chile, sobretudo Valparaíso e Punta Arenas; esta povoação floresceu então como importante porto marítimo a nivel mundial para os navios que cruzavan o Estreito de Magalhães do Atlântico para o Pacífico. 

A comunidade britânica é a maior comunidade estrangeira no Chile, que fez do inglês a segunda língua no país, e deu nome a imensas famílias miscigenadas. Alguns britânicos ao serviço do império espanhol adquiriam relevância na História chlilena. Além disso, ficaram tradições como o chá, os clubes, o ténis e o cricket.

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*Militar chileno que conduziu o processo de independência do país

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Larysa Petrivna, a poetisa que conforta num boulevard de Moscovo

 ------  baseado num artigo de Benoît Vitkine no Le Monde de 28 de Janeiro  ------

Larysa Petrivna é o nome verdadeiro da poetisa ucraniana Lesya, Леся Українка (1871-1913), que ainda é lembrada em Moscovo numa estátua situada numa avenida nobre e central, ainda denominada 'Ukrainska Boulevard'. Não será por muito tempo, parece-me, pois é ali que alguns cidadãos vão depositar flores na derradeira manifestação possível de solidariedade em Moscovo. Flores, mas não só: peluches, brinquedos, velas acesas, aos pés da Lesya dos ucranianos, promovida quase a divindade.


Desda o bombardeamento de Dnipro a 14 de Janeiro, este passou a ser o ponto de encontro dos que se opoem à "operação especial". Escreve Benoît Vitkine:

"É um exercício terrivelmente solitário. Uma mulher avança, tem dois cravos vermelhos na mão. Ajoelha-se demoradamente, e quando se levanta tem os olhos inchados de lágrimas e a respiração ofegante. Nada de teatral, não é representação. As únicas testemunhas visíveis são dois polícias a alguns metros, num veículo de lâmpada rotativa acesa. A respiração ofegante é da dor e do medo."

Le Monde, 28/1/2023

"Quando se dá conta de nós jornalistas, precipita-se com o smartphone estendido: 'tirem-me uma foto, para eu mostrar aos que não acreditam que ainda é possível.' (...) É no filho que ela pensa ao depositar as flores: 'não quero que ele viva num país parecido com o Irão, não quero que crianças ucranianas da idade dele continuem a morrer. '(...) 'Eu tinhe de vir, também por mim, para me poder respeitar, para que o mundo saiba que nem todos os russos apoiam este horror.' Ninguém sabe quem levou o primeiro raminho; depois desse, muitos outros se seguiram , apesar das detenções. Todas as noites, as flores desaparecem, levadas por desconhecidos; cada dia, a pequena montanha de flores é reconstituída."


" Numa só hora, neste dia 24 de Janeiro, quatro pessoas vieram depositar ramos, e depois retiraram-se; outras hesitam; uma mulher aproxima-se e recua ao ver a polícia; um jovem dá várias voltas à estátua, como que a apalpar o terreno; uma mulher mais corajosa pergunta em voz alta: 'temos direito a colocar flores ?' O polícia encolhe os ombros."


Sobre Lesya:

http://athena.pt/2021/05/14/a-potente-voz-de-lesya-ukrainka-ukrainka

https://www.unesco.org/en/articles/lesia-ukrainka-path-love-fight-and-hope


Sapho


No topo da rocha, sobre as ondas 
uma bela jovem se queda
coroada de refulgentes louros 
tem nas mãos a melódica lira

E é uma canção de tristeza
que ela agora na lira acompanha 
ao coração lhe sobe uma  mágoa 
que lhe pesa na voz ao cantar

Fala da majestosa glória
Lembra a beleza do mundo, 
a gente perversa, o amor
 e a traição, os anos de lástima.

Esperança e desespero... a jovem
dilacera a coroa de louros
e no clamor das ondas do mar 
encontra o fim da canção.
                                 
                                                       Lesya Ukrainka, 1884

[tradução combinando traduções francesa, inglesa e espanhola]

A escravidão ainda é mais ignóbil quando é livre.


domingo, 11 de abril de 2021

Muro da Memória Covid, Londres

 Este memorial não foi erigido e inaugurado com pompa por nenhuma instituição ou ministério. Foi surgindo da mão das pessoas, sob a trágica inspiração de uma avalanche colectiva de mortes. Vamos a caminho dos três milhões, desde a 2ª Grande Guerra nada se lhe compara. 

Se há Arte Popular, é isto: belo e feito pelo povo de Londres. É uma parede ao longo do passeio fluvial do Tamisa, na margem oposta ao Parlamento. 







Sombras, que vão lembrar sempre o que foram os miseráveis anos 20 do século.