quinta-feira, 29 de abril de 2021

Em Perugia, seguindo os passos da minha tia na década de 70.

 

Perugia foi outra italiana imperdível que, ahimè, perdi.


Uma das pessoas a quem muito devo foi essa irmã do meu pai que entre outras coisas me deixou o bichinho de viajar pela Europa, e em particular Itália, França e Flandres. Não casou, tinha por isso tempo e disponibilidade, algumas (poucas) poupanças, e sobretudo uma grande sede de História e Cultura que eu herdei. Isto não é um post qualquer, é a minha humilde homenagem; e pouco a pouco foi ficando mesmo um dos meus melhores posts aqui!

Palmilhou Itália pedra a pedra, capela a capela, museu a museu. É quase inacreditável a extensão da lista de cidades e locais históricos que visitou. De tudo isso fazia, na volta, pequenos dossiers com guias, mapas, postais e notas de viagem.

Para meu consolo e já agora para uma publicação rica de cultura mediterrânica, cá vai Perugia como ela terá visto, mais ou menos; como nunca tive oportunidade de lá chegar, faço a visita inspirado por ela e suas notas. Juntei imagens digitalizadas de postais que ela tinha no dossier, 'melhoradas' em Photoshop.

Ela foi de Roma, de combóio (viajava sempre de combóio), e mal chegou deve ter caminhado direitinho até à Casina di Perugia onde se alojou, por trás da Piazza IV Novembre. Imagino que se sentou num dos degraus do Duomo, de frente para a fonte, a Fontana Maggiore.

Piazza IV di Novembro: Palazzo, Fontana e Duomo.

Tanto quanto sei. ainda é possível ver Perugia assim, em sossego: pela sua situação não é incluída na maior parte dos roteiros, talvez pela distân cia de 2h quer de Florença, quer de Roma. A Umbria é uma parte menos procurada e acessível de Itália. É uma sorte, tanta bela arquitectura para contemplar demoradamente. e a praça parece nova, acabada de construir, pristina.

De 1277, esta obra de Fra Bevignate celebrou a chegada de água à cidade depois de concluído o aqueduto que a trouxe de um monte próximo. As lajes de mármore esculpidas em baixo-relevo são obra de Nicola Pisano.

No tanque superior, imagens dos Santos (Pedro, Paulo, Lourenço...) e a personificação de Perugia, uma raínha próspera com uma cornucópia, símbolo da abundância de que gozava a cidade desde o séc. XII.

Em baixo, cenas das Quatro Estações, bíblicas e de trabalho. 

Outono: o envasilhamento do vinho.

As origens de Perugia sao pré-etruscas.  Mas foram os Etruscos que alargaram e fortificaram a cidade, e lhe coseguiram importância regional. Quando a Fonte foi construída, era a mais rica cidade da Umbria.

Do aqueduto resta ainda uma pequena secção transformada em Via del Acquedotto para peões, na parte alta da cidade.

Palazzo dei Priori - Galleria Nazionale dell' Umbria

O Palazzo dei Priori, construído entre 1293 e 1343, é talvez o mais perfeito dos palácios gótico-medievais italianos. Foi sempre sede administrativa e agora também lá está alojada a Galeria Nacional da Umbria.

A Entrada lateral faz-se pelo Corso Vannucci.

O Leão é um dos símbolos de Perugia.

A Galeria‎ expõe quase apenas imagens bíblicas, dezenas de  Annunciaziones, Madonnas col Bambino, Trípticos góticos. 

Mas há pelo mesmos uma surpreendente obra-prima: Santa Cecília a tocar a Espinetta *, de Orazio Gentileschi (1622)‎.



Gentileschi tinha talento de sobra, que a filha Artemisia herdou e ainda elevou mais alto.

As mãos que tocam música, espantosas.

Alguns detalhes notáveis:

Bartolomeo Caporali.

Pinturrichio, Arcangelo Gabrieli (detalhe de Annunciazone)

Bonfigli, 'Madonna e la colomba'. Uma pequena mararavilha, ao centro de uma Annunciazone.

A Madonna em Terracota


Uma das peças mais admiradas é a Madonna de Agostino Di Duccio, uma escultura em terracota polícroma de ca. 1461:

Realizado em pasta de argila num molde de madeira.


Um fartote de arte bíblica.

De novo na Praça, o grande portal do 1º andar, no topo da escadaria, abre-se para a Sala dei Notari, de tectos pintados com as Fábulas de Esopo. 


Entre o Palácio e a Catedral, está o Collegio dei Cambi (1457), a Bolsa dos cambistas, que eram os banqueiros no século XV.  Aí se encontra a muito famosa Sala delle Udienze (audiências), ricamente decorada por Perugino.




Profetti e Sibille.(metade inferior), painel de Perugino.

Detalhe

Catedral de San Lorenzo

Em frente ao Palácio, do outro lado da Fonte, fica a Catedral gótica  inacabada (1345 - 1430), tosca e incaracterística. Deste lado, a fachada lateral, o melhor é a loggia que abriga da chuva ou do sol, e os degraus ao longo da parede para sentar a disfrutar a praça.



Lá dentro as madeiras com embutidos do coro são uma das poucas riquezas decorativas.

A cidade velha organiza-se em torno de duas vias - O Corso Cavour e o Corso Vannucci - e duas praças - a Piazza Italia, ajardinada, e a IV de Novembro, o 'centro histórico'.


A Pastelaria Sandri, Corso Vannucci 36, é uma instituição na doçaria de Perugia. Finalmente, uma arte secular :)

Chocolates, vinhos, pastelaria e café numa sala de 1860.

O Corso Cavour é uma rua estreita entre fachadas altas em cores pastel; percorridos alguns metros passa-se à Praça Giordano Bruno, uma pequena praceta, onde se situa o antigo Mosteiro de San Domenico, agora adaptadao a Museu Arqueológico Nacional da Umbria,(MANU). E que museu !

Entra-se pelo claustro. 


Uma das salas dedicada a Bronzes Etruscos. 

São miniaturas com poucos centímetros.

Estatueta votiva, provavelmente Marte.


Uma peça bem conhecida, a Sereia (há quem lhe chame Tritone) em bronze, verdadeira obra prima. (séc VI A.C).

Encontrada numa zona funerária (San Cristiano de Corciano).

Broche em bronze, século IX A.C.

Muita riqueza de peças etruscas e romanas:


Theseu e o Minotauro, ânfora greco-etrusca, ca. 550 A.C.

Kylix, 555-535 AC.

Passada a Porta Marzia e os panorâmicos Giardini Caducci, sítio excelente para sentar, as pernas já devem estar martirizadas. Da balaustrada vêem-se os telhados, os jardins e as torres da cidadae, entraremos no Corso Vannucci, uma vulgar rua de esplanadas e alta moda.

Vista do jardim para o mosteiro de San Domenico

A parte alta de Perugia é extremamente íngreme, uma via de trânsito tem de seguir em sucessivos SS encosta acima, e as vias pedonais precisam de falsos degraus esculpidos para vencer a forte rampa. Uma garrafinha de San Pellegrino é indispensável. As vielas do alto, como a Via Bartolo, a Via Ritorta (o nome diz tudo); a Via Appia, que cruza o percurso do antigo Aqueduto e a via Cesare Battisti, são um labirinto de curvas e declives, escadas sob arcos e túneis, qual delas a mais pitoresca, caótica e desnorteante.

Ponte da Via Appia sobre o Aqueduto, visível mais abaixo.

Via do Aqueduto.

Via Maestà delle Volte

Nessa rede de vielas em declive, a Via Maestà delle Volte começa numa esquina esconsa da Piazza IV Novembre junto à catedral, e como um cenário de filme passa entre altas fachadas uma fonte sob arcos, ruínas de portais, túneis, e chega à Piazza Cavalotti.

Sob um Arco do século XV, foi construída em 1928 esta fonte de imitação medieval, com bom gosto, convenhamos.




Foi aqui mesmo ao lado que a minha tia esteve alojada, na Casina di Perugia em Via Fratti. Logo a seguir a Maestà cruza-se com a Via Ritorta:



A via Ritorta é em si programa para uma monografia.



A 'Maestà' que deu nome à rua está num túnel.


Passada a Piazza Cavallotti entra-se na via Cesare Battisti que nos leva a um viagem pelo tempo - um Aqueduto lá em baixo, a surpresa de um curva com vista da larga paisagem dos telhados, jardins, chaminés e torres,  do lado oposto às edificações na parede etrusca : 

Vista da curva da Cesare Battisti-


Ao fim da rua damos com a imponente Porta ou Arco Etrusco, do séc III A.C., ladeado por dois torreões, um deles com loggia renascentista no topo. Uma inscrição 'Augusta Perusia' recorda o cerco de Ottaviano em 40 AC, a que a cidade resistiu sob Marco António.


É outra referência inconfundível, uma das 7 antigas portas da muralha. A parte etrusca termina no friso; a loggia é uma adição renascentista do séc. XVI.
 

Ali perto, na Piazza Danti, o poço etrusco:
 
Há visitas regulares ao poço, pelas entranhas subterrâneas de Perúgia. Não seria para mim.

Quem gostar de encostas íngremes pode escalar a Via Bártolo, po exemplo.


Não faltam recantos no labirinto da parte alta que valem o esforço, e uns degraus ou muretes para repousar os pés.


E termino com outro testemunho etrusco, a Igreja circular de San Michele, ou de Sant'Angelo, já fora de muros; uma estrutura peculiar que já foi muito remodelada.


Templo paleo-cristão (séc. V-VI), a igreja mais antiga de Perugia, com nave anelar e altar ao centro.
 



* espécie de clavicórdio, um pequeno cravo.

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Puxa! Este deve ser o meu mais cansativo post de sempre. Bem preciso de um cafezinho na Sandri.


Perugia é uma descoberta ao virar cada esquina, um tesouro a surgir de súbito onde não se espera. Pequena, com menos de 170 000 habitantes, compara com Badajoz ou Braga, mas nada tem de provinciano. É sim uma belíssima Capital da Europa. Só em Itália !

Como memória deixo alguns dos postais da minha Tia, imagens de época.

Claustro de S. Giuliano.

Interior da Igreja de S. Pedro.

Fontana e Arco de la Maestà



 

4 comentários:

Fanático_Um disse...

Fantástico. Obrigado!

Mário R. Gonçalves disse...

Desta vez, acertei num sítio onde já esteve, Fanático-Um? Numa ida a Pesaro?

Fanático_Um disse...

Não, nunca estive, mas ainda não peri a esperança de lá ir, assim a pandemia o permita!

SilverTree disse...

Repito-me sempre nestas suas publicações de viagens, mas mais uma vez, obrigada! E como alguém que gosta mesmo da arqueologia das gavetas, que bom, ter um tesouro familiar assim para percorrer e celebrar. Um abraço!