"Tudo num ponto", de Italo Calvino, é um dos seus genias contos cosmi-cómicos. Quem se lembraria de fazer nascer o Universo de um acto de generosidade? Sim, quando tudo estava concentrado num Ponto, como uma lata de sardinhas, um dos habitantes do Ponto, a signora Ph(i)Nko, uma típica "mamma" italiana, sufocava sem espaço. Queria fazer tagliatelle para a rapaziada !
Excerto final da história da Criação, narrada pelo velho Qfwfq:
Estavámos tão bem todos juntos, tão bem, que alguma coisa de extraordinário tinha de acontecer. Bastou que a certa altura ela dissesse: - Rapazes, se eu tivesse espaço, gostava tanto de vos fazer uns tagliatelle ! - E naquele momento todos pensámos no espaço que tinham ocupado os seus roliços braços movendo-se para frente e para trás com o rolo a espalhar a massa, o peito inclinado sobre o montão de farinha e de ovos que atulhava a vasta travessa enquanto seus braços amassavam amassavam, brancos e untados de azeite até aos cotovelos; pensamos no espaço que teriam ocupado a farinha, e o trigo para fazer a farinha, e os campos para cultivar o trigo, e as montanhas de onde corria a água para regar os campos, e os pastos para o gado que forneceriam a carne para o molho; no espaço que seria necessário para que o Sol viesse com os seus raios amadurecer o grão; no espaço para que a partir das nuvens de gás estelares o Sol se condessasse e incendiasse; na quantidade de estrelas e galáxias e aglomerados galácticos em fuga no espaço que teria sido necessária para manter suspensa cada galáxia cada nebulosa cada sol cada planeta, e no momento mesmo em que o pensávamos, esse espaço, imparavelmente, ia-se formando: no momento mesmo em que a sra. Ph(i)NKo pronunciava aquelas palavras: " - tagliatelle, ora vejam, rapazes ! -", o ponto que a continha a ela e a nós todos expandia-se numa incandescência de distâncias de anos-luz e de séculos-luz e milhares de milénios-luz, e nós lançados aos quatro cantos do universo (o sr. Pber t Pber d foi parar a Pavia), e ela dissolvida em não sei que espécie de energia luz calor, ela, a sra. Ph(i)Nko, ela que no meio do nosso fechado mundo mesquinho tinha sido capaz de um impulso generoso, o primeiro, "Rapazes, que tagliatelle eu vos daria a comer !", um verdadeiro impulso de amor geral, dando início no mesmo instante ao conceito de espaço, e ao espaço propriamente dito, e ao tempo, e à gravitação universal, e ao universo gravitante, tornando possíveis biliões e biliões de sóis, e de planetas, e de searas de trigo, e de senhoras Ph(i)NKo, dispersas pelos continentes dos planetas, que amassam com seus braços untados e generosos e enfarinhados, e ela desde esse instante perdida, e nós chorando por ela.
Saudades de quando estávamos todos juntos, numa singularidade única !
Para todos nós, a esperança de retornar ao ponto inicial é principalmente a de nos encontrarmos de novo junto à senhora Ph(i)NKo.
Fábula, alegoria, parábola, o que quiserem, mas não há outro que se compare a Calvino.
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