domingo, 27 de agosto de 2023

Kharkiv, era uma vez na Ucrânia

Prolongada e teimosamente, bombas e mísseis caem e vão desfigurando a cidade de Kharkiv, muito perto da fronteira com a Rússia, que os habitantes costumam recordar como muito bonita e agradável para viver. Tal como Chernihiv, tal como Odessa. À crueldade sinistra de matar pessoas inocentes, soma-se a de tornar desolada e difícil a vida dos que continuam, no meio de ruínas.

Em Kharkiv, grandes prédios da época art-deco, do início do século XX, esventrados ou em desmoronamento, e nas ruas grandes crateras enegrecidas, são o sinal visível das muitas vítimas fatais. O êxodo já foi descrito por Yeva, a menina que escreveu o livro de fuga e exílio 'You don't know what war is', enquanto os que resistem lastimam a perda da elegância, dos parques, da animação urbana, das zonas comerciais e residenciais modernas, das ruas antigas.

Kharkiv é grande como Lisboa, não cabe aqui num pequeno post. Esta é uma visita rápida focando o que me parece mais interessante. É uma bela cidade !

O centro administrativo é a Praça Svobody (Liberdade), centrada num vasto jardim e dominada por um imponente complexo de arranha-céus em arco nos estilo construtivista dos anos 30 na URSS, talvez o maior e único belo edifício da era estalinista - o Derzhprom; pretendia celebrar a modernidade e o poderio do Estado Soviético, na altura em que os Estados Unidos também construíam grandes arranha-céus por todo o país. Convém não esquecer que foi nessa altura que os ucranianos foram condenados, pelos mesmos que celebravam a arquitectura nacionalista, a uma criminosa mortandade pela fome - o regime 'dava' prédios e roubava todo o cereal que podia. 

O Derzhprom, de 1928, domina a praça Svoboda. É um caso único na arquitectura moderna da primeira metade do século XX.

Praça Svobody, em forma de 'gota'.

Está classificado pela UNESCO como obra maior do construtivismo, mas já não serve o propósito de apoio à indústria; depois de sete anos de reconstrução, uma boa parte é administrativa, tem serviços como a TV e rádio; mas a ocupação maior era da Unversidade de Kharkiv, antes de ser parcialmente reduzido a escombros.

A Praça da Liberdade vem sendo atingida repetidamente desde Março de 2022. Talvez em fúria por não terem conseguido a rendição da cidade - que julgavam pró-russa, mas que poucos anos antes tinha abatido as estátuas do regime soviético, e agora se conseguiu libertar do cerco russo.

A Praça tem a forma de uma gota 💧, em que o arco é formado pelo complexo Derzham, e na parte mais estreita desagua a Rua Svoboda. A esquina ficou em mau estado, devido a ter sido visado o grande edifício administrativo da cidade.

Uma das ruas mais bonitas é a Universitets'ka, onde foi instalada a Universidade de Kharkiv. Com a Torre da Anunciação ao fundo, estão frente a frente dois dos mais marcantes edifícios universitários. 


A Igreja da Universidade (1831), de Vasiliev, continha um observatório e uma biblioteca. Estragos de alguma gravidade foram causados em Março de 2022 por um míssil russo.


O Palácio do Governador


Começou por ser a Residência do Governador (1767-77), ainda sob Catarina II, antes de  ser convertido no edifício principal de Engenharia.


A Catedral da Anunciação e o edifício da Biblioteca da Universidade.


A Catedral é o mais antiga igreja de Kharkiv, construída em 1657 mas com sucessivos restauros.



Ambos os edifícios tiveram desgastes exteriores e interiores com os bombardeamentos. Na esquina en frente fica a antiga Biblioteca da Universidade.

A Biblioteca, de 1804.





A Rua da Universidade leva à outra grande Praça, a Maidan Konstytutsii - a Praça da Constituição, que é talvez o sítio mais nobre da cidade, num ambiente quase vienense. É uma praça de formulação estranha, praça-dentro-da-praça, que continua como larga avenida.

 
No centro a Estátua da lndependência "Voa, Ucrânia", e ao fundo a rua Universitets'ka e o Museu de História, parcialmente envidraçado num projecto de ampliação recente.



A frente leste da Praça prolonga-ae numa bela sequência de edifícios clássicos monumentais:


Parte destes edifícios foram destruídos por mísseis russos.


Teatro de Marionetes, nº 24


Fica ainda na Maidan Konnstitutcii a Casa com Espira, uma das ditas "Sete Maravilhas de Kharkiv", obra para inglês ver da era estalinista. Conforme os gostos, pode ser apreciado como um marco brilhante da pujança russa no pós-guerra, ou como um mamarracho dispensável e caríssimo para propaganda do regime. Seja como for, é legado Histórico relevante.

O prédio de prestígio com a sua esquina curva reentrante, onde se instalou o GorCafé .

Foi erguido em 1954 para residência dos trabalhadores de uma grande empresa electromecânica (motores e turbinas, transformadores) KHMZ / VEK.


A torre faz esquina com a Avenida Heróis de Kharkiv (antiga Moskovka). Esta é a esquina mais frequentada e congestionada da cidade, onde fica - ou ficava - o melhor café central, o GorCafé 1654, abreviatura de 'Gorodskoe kafe'.



Que bom ambiente, vê-se logo que é Europa e não o vizinho de leste.


Em frente está a Casa Bratsk (Irmandade), um dos mais belos prédios da cidade, do final do século XIX. Começou por estar ligado à irmandade da Santa Assunção, mas cedo se tornou prédio comercial de prestígio.

 
É o nº 12 da Praça da Constituição, já foi Farmácia, agora era Banco, em frente do Gorcafé.


A rua Darwin (Darvina), uma das ruas antigas, está alinhada de moradias do início do século XX de valor arquitectónico individual - revivalistas, em estilo neo-gótico ou neo-barroco - e vai descendo para o rio.

Nº 23, casa de comerciante, 1901
 
 
Uma das primeiras casas da rua, o nº 25 é, de 1887.
 
 
 
Como já escrevi, há muito mais que ver em Kharkiv; na outra margem do rio, por exemplo, há séculos via de acesso à cidade atravessando o rio Lopan, a estrada de Poltava (Poltavskyi Shliakh) tem perto de 30 casas classificadas e protegidas.

Ficou em cacos grande parte disto tudo, e sem qualquer lucro nem vantagem a não ser satisfazer um ego nacionalista violento e raivoso, "se não é para mim não será de ninguém". Destruir uma cidade destas já é perder, já é desistir, quem vence quer conquistar tesouros e não reduzi-los a cinza. 


Que venha depressa uma Primavera livre para Kharkiv.



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