domingo, 24 de março de 2024

Portmahomack em Tarbat, sítio dos Pictos, e a Sereia do Norte, em Ballintore

- Grande post sobre uma região da Escócia que poucos conhecem. -


Portmahomack é uma aldeia litoral da costa leste das Highlands escocesas. O nome deriva do Gaélico 'Port Mo Chalmaig' (que significa 'Porto de St. Colmóc'). A povoação reduz-se a uma agradável fileira de casas ao longo da estrada marginal junto ao mar, contando com um portinho murado, escola, hotel, restaurantes, loja básica e posto de correios. 


A praia é uma das mais bonitas desta região escocesa, e lugar de observação de golfinhos, e Robert Stevenson fez construir no extremo da península um Farol monumental. A 'cidade' mais próxima é Tain, a dez quilómetros para o interior.


Portmahomack fica na peninsula de Tarbat (Tarbat Ness), a sul do Dornoch Firth  e a Norte de Inverness. Tem cerca de 600 habitantes. 

Harbour Street , a rua principal, em dia de sol

O Oystercatcher, restaurante afamado, está em Harbour Street

Casas do séc. XVIII, na esquina de Well Street.

Na entrada para Castle Street, o hotel da aldeia.

Entre as casas e o mar, jardins.


Harbour Street foi decorada em 1892 com uma fonte de água potável a celebrar a chegada de água canalizada à aldeia em 1877. Uma obra muito festejada e de conotações maçónicas.




Dois armazéns do séc. XVI-XVIII situados frente ao porto, chamados 'girnals', são edifícios históricos clasificados. 



Encontravam-se em muito mau estado, e foram restauradas para habitação. A mais antiga é a Telford House do séc. XVI, tem dois andares; a maior e mais recente, do séc. XVIII, com três andares, foi armazém de grão. 

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Telford House, a casa mais antida da aldeia.

 Do séc. XVIII/XIX, serviu como armazém de grão.

O porto, que data de ca. 1816, chegou a ter alguma importância no século XIX para a exportação de grão. 



A Rota Picta

O mais interessante em Portmahomack é a herança Picta. Toda esta região escocesa foi habitada desde a Idade do Ferro pelos Pictos, uma população nativa em estado tribal à época da chegada dos Romanos à Britannia, até à chegada dos Vikings.

A Rota Picta situa-se a Norte de Inverness, são vários locais arqueológicos e museus que evidenciam essa população de escrita Ogham / pictográfica em pedra.

Após a conversão ao Cristianismo, foi aqui mesmo fundado o primeiro Mosteiro Picta, cerca de 550 dC, destruído pelo fogo ca. 800, talvez por um raid Viking. As escavações descobriram centenas de artefactos.

Os Pictos eram um grupo de povos de língua celta/gaélica que viveram no norte e leste da actual Escócia, durante a tardia Idade do Ferro britânica e até ao primeiro período medieval. É um dos povos "perdidos" da Europa, sabe-se muito pouco àcerca deles devido a não ter sido decifrada nenhuma inscrição nem os símbolos pictográficos gravados em pedra. Um dos exemplos mais ricos é a pedra de Rodney, em Brodie.

'Z-rod' e disco duplo, ao fundo, e inscrições em alfabeto Ogham nas bordas.

'Z-rod' com duplo disco, o símbolo mais frequente nas pedras Pictas.

Não construíram cidades, viviam em semi-nomadismo de família alargada, em construções de pedra semelhantes a Castros - os Brochs (ver aqui) e os Crannógs, ilhas artificiais nos lagos, fortificadas, rudimentares, com acesso palafítico estreito que garantia alguma capacidade defensiva.


Mencionados por historiadores romanos da era pós-Ptolomeu, à volta do ano 300, os Pictos e Romanos estiveram sempre em guerra e foi contra eles que foram erguidas as muralhas de Adriano e de Antonino, o último reduto, em 142. Durou 8 anos, os Romanos foram forçados a recuar para a outra muralha mais a sul.

Após a retirada dos Romanos, os Vikings vieram pouco a pouco ocupar os territórios da Escócia e em 840 já não havia reinos Pictas, Quase nada ficou para a História: pedras esculpidas, Brochs e Crannogs, alguns fragmentos de utensílios.

Igreja de St Colmóc (St. Colman)



No mesmo local do Mosteiro, perto de Portmahomack, foi construída na Idade Média (séc. IX) uma Igreja dedicada a St Colmóc, que será o missionário celta irlandês S. Colmán de Lindisfarne (605-675). Era um belo templo medieval, que após anos de abandono foi restaurado e reconvertido em Museu Picta, sob a designação "Tarbat Discovery Centre".


É mais vulgarmente conhecida como 'West Tarbat Church'.


A torre sineira quadrada com cúpula ogival de pedra, de meados do século XVIII, é um elemento invulgar. Crê-se que o sino era de um navio da Invencível Armada espanhola.

Na parte medieval que ainda resta atrás da nave, existe uma cripta pouco usual, do séc. XIII.

Há aqui pedras do Mosteiro do séc. IX.

A nave da igreja está convertida em espaço museológico.


Tarbat Discovery Centre


Tem uma grande colecção de fragmentos de escultura em pedra dos Pictos, com figuras humanas e animais (ursos, serpentes, dragões), com entrelaçados e padrões  geométricos 'Celtas' . 

A Pedra do Dragão, do séc. VIII,  uma das mais belas pedras esculpidas pictas

O lado oposto, designado por "Monk side", não é tão elaborado. 

Outra pedra mostra uma cena de gado; os Pictos não tinham cidades, eram pastores, agricultores e pescadores. 

Nigg Stone

A Pedra de Nigg é a peça maior da colecção picta de Tarbat. Data do séc VIII-IX e é uma das mais requintadas pedras esculpidas pré-medievais da Europa. Tem dois metros de altura por um metro de largo, e é de calcário com gravura de detalhe admirável, que lembra um manuscrito com iluminuras. Do lado da frente, uma cruz muito decorada:


O outro lado da pedra representa uma cena bíbilica complexa, com David a defender o rebanho de um leão, enquanto acima e abaixo se vêm nobres Pictos em caçada. Nem falta a Harpa de David. Contudo, a gravura está muito desgastada, alguém deve ter raspado tentando apagar.

Castelo de Ballone

O castelo escocês mais próximo é o de Ballone, sobre um promontório rochoso, sobranceiro ao mar.


Construído no séc XVI, e após prolongado abandono, foi restaurado e convertido em residência e sede de uma empresa de decoração.



A Sereia do Norte, em Ballintore


'The Mermaid of the North' é uma escultura em bronze de Steve Haywood, instalada em 2007 no rochedo negro 'Clach Dubh' , em Ballintore, na costa a Sul de Portmahomack.

É na maré alta que fica mais valorizada.




Termino com dois postais turísticos: 
- o Farol construído em 1830, obra da engenharia de Robert Stevenson.

Tem 53 metros, um alcance da luz de 30km, e algumas semelhanças com o Farol da Barra de Aveiro, mais recente.

- e a praia de Portmahomack, onde se avistam golfinhos:



Há tanto mundo que ver na Escócia ! 

segunda-feira, 11 de março de 2024

Com Peary e Henson na ilha de Ellesmere - relato de um explorador em rota para o Pólo


Mapa da expedição de Robert Peary ao Pólo Norte , em 1909


Matthew Henson foi um dos primeiros homens a chegar ao Pólo Norte, ou pelo menos a chegar perto, algumas dezenas de quilómetros, em 1909. A expedição que tentou esse feito foi a terceira do grande explorador Robert Peary, um americano megalómano, que contou com a ajuda de quatro esquimós (Ooqueah, Ootah, Egingwah e Seegloocom) nas cargas de trenó e nos acidentes de trajecto, e do navegador Matthew Henson que se descrevia como "de raça negra", com orgulho. No pequeno vapor 'S.S. Roosevelt' seguiam ainda 246 cães ! Que equipa mais estranha.

A familia esquimó no convés do Roosevelt. Duas mulheres também estavam na equipa de apoio.
Robert Peary, comandante do 'S.S. Roosevelt' e da expedição

Mas quem me surpreendeu foi Matthew Henson, ainda mais quando soube que era de pele escura. Nasceu já livre, coisa rara na época (1866), e iniciou a carreira como grumete; mas era empregado de armazém quando conheceu Peary. Foi com ele que começou a navegar e aprendeu o modo de vida Inuit. Iriam ser companheiros durante 18 anos em várias expedições.

O que vou transcrever é a tradução de um belo excerto do diário de Henson na viagem de 1909, mas antes disso quero dar alguns detalhes.


O acesso ao mar gelado do Ártico polar fez-se a partir da ilha de Ellesmere, um território imenso e quase deserto onde só há uma povoação inuit, Grise Fiord, no Sul. A equipa de Peary, num total de 22 incluindo homens de apoio, estabeleceu-se no extremo Norte, em Cape Sheridan, para a quarentena de Inverno a bordo do vapor Roosevelt.

A chegada ao Cabo Sheridan foi a 5 de Setembro de 1908, após uma viagem difícil a romper gelo ao longo do Canal de Robeson, que separa a ilha da Gronelândia.

O Roosevelt chega ao Cabo Sheridan.


O Roosevelt ancorou numa brecha da maré de gelo, encostado a uma crista de pressão. O navio fora encomendado por Peary expressamente para a expedição, e foi mais um factor de sucesso. Tinha a quilha de madeira com 70 cm de espessura, reforçada com um sistema de traves flexíveis contra a pressão do gelo, e o revestimento do casco em espessa folha de ferro.


Durante quinze dias procedeu-se à descarga de trenós, mantimentos e outras provisões, instrumentos e cães, que ficaram em terra abrigados em caixas cobertas pelas velas do navio. A tripulação manteve-se a bordo, com as caldeiras e o motor a trabalhar durante  seis  meses, fazendo manutenção, jogos, leituras e planeamento, e revezando-se em vai-véns para provisões. O lugar deste acampamento fica próximo da actual Estação Polar Alert.

Só em Fevereiro do ano seguinte, 1909, quando a primeira luz se vislumbrou depois da noite invernal, uma primeira equipa arrancou com os trenós para o Cabo Columbia. Seguiram-se outras, mas apenas seis homens e cinco trenós iriam fazer a última marcha para o Pólo através do mar Ártico, duas semanas depois, a 1 de Março.

Os picos de Cape Columbia

Cabo Columbia, a 83°07′ N, fora escolhido como ponto de partida da última etapa sobre a placa do Ártico porque é o ponto mais setentrional do Canadá ( e o segundo do planeta), oferecendo assim uma distância mínima até ao Pólo, 769 km (478 mi). A placa oceânica tem uma espessura à volta de 2 metros de gelo, mas o seu movimentos cria cristas de pressão que a alteram constantemente. 

É esse percurso desde o Roosevelt até ao Cabo Columbia que Henson descreve neste excerto: "uma região de soturna magnificência". 


" Penhascos ressaltados que se projectam sobranceiros à trilha; promontórios selvagens e escuros, que somos obrigados a contornar, que se arremedam sobre as águas cobertas de gelo do Oceano, vastas extensões de planície gelada varrida pelo vento, e tudo isso em sucessão nas noventa e três milhas entre os dois cabos; foram precisas três étapas para as percorrer."


" Fevereiro, 23: Forte nevão mas praticamente sem vento esta manhã pelas 7 h.
(...)
Há um irresistível fascínio nas regiões do extremo Norte da Terra de Grant que me é impossível descrever. Não tenho espírito poético e fui endurecido por muitos anos de experiência nesta terra inóspita, as palavras adequadas para dar uma ideia da sua beleza única não me ocorrem. Imagine-se uma desolação admirável, um espantoso descampado branco. Nunca parece ser dia, dia amplo e claro, mesmo a meio de Junho, e o céu tem diferentes aspectos que variam ao longo das horas de crepúsculo matinal, do crepúsculo do entardecer, do primeiro ao último vislumbre de luz."
 

O regresso do Sol.

" Nos princípios de Fevereiro, ao meio dia, uma estreita faixa de luz aparece no horizonte na direcção do Sul, anunciando a vinda do Sol, e dia após dia a duração do crepúsculo aumenta, até que nos primeiros dias de Março o Sol é um disco flamejante de vermelho-púrpura que se eleva, com uma imagem distorcida, um pouco acima do horizonte. Esta forma distorcida deve-se à miragem causada pelo frio, tal como ondas de calor sobre os carris de ferro de uma linha de combóio distorcem a forma dos objectos que estão mais para além."


"As encostas voltadas a Sul dos picos mais elevados já reflectiam há muitos dias a glória do Sol vindouro, e não é preciso um artista para disfrutar estas esplendorosas vistas sem igual."




" As neves que cobrem os picos mostram todas as cores, variações e tonalidades de uma palette, e mais. Já vieram conosco artistas ao Ártico e ouvi-os em delírio com as fantásticas beleza do cenário, e vi-os trabalhar a tentar reproduzi-lo parcialmente com bons resultados mas nada que se compare ao original. Como disse Mr. Stokes, 'it is color run riot' (é um tumulto de cores)."


" Mas em direcção a Norte é tudo ainda escuro, e as estrelas mais brilhantes do céu sáo visíveis, mesmo que enfraquecendo aos poucos conforme a luz aumenta.

Quando finalmente o Sol sobe acima do horizonte e percorre a sua curva diária, os efeitos de cor são cada vez menos, mas então crescem os efeitos de céu e núvens, e as sombras nas montanhas e nas fendas e agulhas do gelo exibem outra beleza - azuis glaciais e cinzentos; as manchas descobertas de terra, tons tons de castanho; e a ofuscante brancura da neve deslumbra."


"Ao meio dia, a sensação óptica da nossa sombra é a das nove horas da manhã, devido à baixa elevação do Sol, sempre causando sombras alongadas."


" Sobre nós, o céu é azul brilhante, mais azul que o do Mediterrâneo, e as núvens, desde as caudas sedosas dos Cirros até aos fantásticos e carregados Cúmulos, são sempre belas. Isto é a descrição do bom tempo."

(...)
" Quase todos os sítios servem para se conseguir um boa selecção de vistas; no Cabo Sheridan, o nosso posto de comando, estávamos rodeados de lugares marcantes que se tornaram históricos: para Norte o Cabo Hecla, ponto de partida da expedição de 1906; para Oeste. o Cabo Joseph Henry, e mais adiante, os dois picos do Cabo Columbia de costas voltadas ao Oceano.


Do Cabo Columbia a expedição ia agora deixar terra firme e seguir em trenós sobre as placas de gelo que cobrem o Oceano durante quatrocentas e treze milhas para Norte — até ao Pólo!"
                                                                                                  Matthew Henson, 2009


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A expedição atingiria o Pólo Norte, ou as suas proximidades mais quilómetro menos quilómetro, em 6 de Abril de 1909. O mais certo é que Peary, perante a extrema exaustão de homens e cães, percebeu que era melhor parar e regressar, uma vez que tinham o objectivo à vista. A comunidade Geográfica pôs em causa o feito de Peary, tal como pusera em causa o feito do seu grande rival Scott no ano anterior. O único e incontestado explorador que comprovou ter chegado aos 90º N foi o inglês Wally Herbert, já em 1969, sessenta anos depois de Peary. 


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Fontes documentais

https://www.gutenberg.org/files/67973/67973-h/67973-h.htm

O texto de Matthew Henson foi lido no livro "Nature Tales for Winter Nights", uma compilação editada por Nancy Campbell.