Estive em Uppsala já lá vão uns anos numa breve e gélida jornada de Verão - soprava ventania do ártico e chuvinha diagonal. A 59º N de latitude, foi mesmo uma das minhas incursões mais setentrionais. Mesmo num dia desagradável, deu para ficar encantado com esta cidade universitária de ruelas medievais em torno da catedral, atravessada por um rio de muitas pontes e pejada de estudantes ciclistas.
Não deu foi para me aperceber das riquezas albergadas nos museus, e sobretudo na enorme biblioteca Carolina Rediviva, património nacional :
Falo hoje aqui de duas, de que vim a saber recentemente.
✸ A Bíblia gótica de prata, Codex Argenteus (séc. VI)
Trata-se do primeiro livro escrito em gótico, um alfabeto que foi criado pelo bispo Wulfila ('Lobinho') durante a sua tradução dos evangelhos, iniciada no séc. IV; é o registo mais antigo das línguas germânicas.
Pai nosso (attaunsarþuïn himinam...)
Seria composto por 336 folhas manuscritas, em tinta de prata e ouro sobre 'vellum' tingido de púrpura, mas dessas só estão em Uppsala 188 mais uma, a última folha - a do Evangelho segundo S. Marcos, encontrada em 1970 em Speyer, na Catedral, enrolada dentro de um relicário de madeira. O manuscrito de Wulfila deu uma grande volta, sabe-se que foi saqueado em Praga em 1648 por um ministro do monarca sueco Gustavo II Adolfo durante a guerra dos 30 anos, depois esteve em Amsterdão... acabando com alguma justiça na Suécia, uma vez que os Godos eram afinal suecos.
Os Godos eram um povo de origem nórdica (Gotlândia, sul da Suécia) que depois de atravessar o Báltico se estabeleceu desde o séc. III na zona do Mar Negro, na Moésia, território que é agora da Ucrânia, da Bulgária e da Roménia, e fazia fronteira com o nordeste do Império Romano. No apogeu (final do séc. IV), o seu império ia do Danúbio ao Volga, e do Báltico ao Mar Negro.
Converteram-se ao cristianismo no séc. IV por obra do Bispo Wulfila, que os uniu em torno de um novo alfabeto - o gótico - que se tornou a grande língua germânica oriental. Depois separaram-se - os Visigodos (West Goten) foram mais para sul de França e Ibéria, os Ostrogodos (Ost Goten) conquistaram a Itália onde prosperaram sob o grande Teodorico, até cair em 553 sob o ataque de Justiniano, o romano do Oriente - uma das mais exaltantes páginas da história europeia.
Wulfila explicando os evangelhos aos Godos
Mais tarde, os Visigodos do sul da península fugiriam dos mouros para norte e fundariam o Reino das Astúrias, antepassado comum de Espanha e Portugal...
Palavras portuguesas de origem (visi)gótica:
agasalho, brotar, espeto, espiar, estaca, mofo, roca, roupa, taco... e muita onomástica do Norte (Ermesinde, Gondomar...).
A língua gótica foi desaparecendo durante a Idade Média; só terá resistido mais tempo na ... Crimeia, sim, lá onde Ucrânia e Rússia agora conflituam. Palavras de origem germânica como apel (maçã), handa (mão), hus (casa), singhen (cantar) ainda fazem parte do vocabulário local.
A Europa tem destas coisas. Da Crimeia a Portugal, foi tudo percorrido pelos godos escandinavos antes da Idade Média ! A ideia de Europa começou talvez por ser Romana, e depois Gótica. Temos todos alguma microdose de genes escandinavos...
Na escola nada se aprendia desta coisa apaixonante que foram as chamadas 'invasões bárbaras', que estão tanto na génese europeia como as 'grandes civilizações'.
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✸ O Cancioneiro de Vilancetes Ibéricos, ou Cancioneiro de Veneza
Impresso em Veneza, em 1556, contém vilancetes renascentistas a várias vozes, uns anónimos, outros de vários autores espanhóis, Cristóbal de Morales e Bartolomeu Carceres entre outros.
O único exemplar conhecido está na Carolina Rediviva de Uppsala, e passou a ser conhecido como 'Cancioneiro de Uppsala'. Não se sabe como foi lá parar, mas provavelmente terá primeiro transitado por Áustria. Além de 54 vilancetes, também tem peças em canto-chão. As obras estão quase todas em castelhano, algumas em catalão e uma em galego (Falai meus olhos) :
Falai, meus olhos, se me quereis bem,
Como falará quem tempo não tem?
Desejo falar-vos,
Minh'alma, escutai-me.
Não posso olvidar-vos,
Minh'alma, falai-me.
Vivo desejando a vós, meu bem
Como falará quem tempo não tem?
Exemplos no youtube:
Verbum Carum Factum Est - anonimo, Cancionero de Uppsala
Bartolome Carceres, Soleta so jo ací, Cancionero de Uppsala
Nicolas Gombert, Dezilde al Cavallero, Cancionero de Uppsala.
Hespérion XX - Director: Jordi Savall. - Montserrat Figueras (Soprano).
Dezilde al caballero que non se quexe,
Que yo le doy mi fe, que non la dexe.
Dezilde al caballero, cuerpo garrido,
Que non se quexe en ascondido,
Que yo le doy mi fe, que non la dexe
Anonimo, Yo me soy la morenita
Yo me soy la morenica,
yo me soy la morena.
Lo moreno bien mirado,
fue la culpa del pecado,
quen en mi nunca fue hallado,
ni jamás se hallará.
Soy la sin espina rosa,
que Salomón canta y glosa,
Nigra sum sed formosa,
y por mí se cantará.
Yo soy la mata inflamada
ardiendo sin ser quemada,
ni de aquel fuego tocada,
que a las otros tocará.
Tanta Europa. Começa-se lá em cima, acaba-se cá em baixo, numa volta que passa por Viena, Veneza, Ravenna...
Vale bem um regresso, Uppsala. Com café no Linné Hornan :)
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Aproxima-se o Livro de Areia das 150 000 visitas segundo a estatística do Blogger. Pode até tê-las já passado. É tão pouco... ainda assim, este é um 'post' de comemoração.
2 comentários:
Parabéns, Mário. Acha pouco?
Não se esqueça que o seu blogue não é para todos, nem fala dos seus moods ou dos seus dramas psicológicos. O seu blogue é enciclopédico e exigente.
Estive em Upsala em 1965. O meu Pai tinha um grande amigo, o Prof. Lindt e fomos visitá-lo. Não me lembro de nada em pormenor....
Gostei de ler que temos quase tanto de gótico como de romanos ou gregos. Para náo, como diz, eram os bárbaros que destruiram um império sem dó nem piedade. O império já estava decadente, de modo que foi uma benção!!
Já vi o 1º episódio da mini-série. A música e as paisagens são de 1ª água. E o Cumberbach, Amigo, bem....o Cumberbach é um "pão" que já há muito admiro. Mesmo a fazer de Assange....
Bom fim de semana!
Deixo também os meus parabéns e agradecimentos pelas horas aqui passadas.
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