domingo, 29 de junho de 2014

Sillly Season: duas obras de cravo ligeiras e bem dispostas.


Para começar o Verão, duas obras divertidas, onde o virtuosimo de compositor e intérprete é um duplo gosto. Disse 'música ligeira',  porque esta não desce às profundezas da alma, mas está longe de ser fácil : nesta escrita há muita técnica e sabedoria.
A mim, quando entram no ouvido não saem tão cedo.

1. As variações Harmonious Blacksmith de Handel, da suite No. 5, HWV 430

Começo por versões "sérias": esta, respeitando o original para cravo:


Vertiginosa rapidez, que mais nenhum instrumento é capaz de conseguir !

E esta, em piano, por Wilhelm Kempff - lenta, bem linda, a puxar para o introspectivo ( !!) :


É provavelmente a melhor que conheço.

Quem procurar encontra versões para harpa, flauta, etc.

Agora, em guitarra ? É de prever a dificuldade de execução, sobretudo das variações finais. Mas há quem não tema nada ! O resultado pode ser desagradável para alguns :D

Smaro Gregoriadou, menina prodígio grega, numa guitarra especialmente construída e afinada. Não começa mal...


mas as limitações da guitarra não dão hipótese.

Há uma transposição de Mauro Giuliani, tocada por John Williams, que se afasta muito do original justamente para evitar estes impossíveis últimos compassos.

A outra obra que proponho, um rondó também muito cantabile com variações, parece-me harmonica e estruturalmente similar :

2. A suite Les Niais de Sologne, de Rameau.

De novo, começo pela versão "autêntica", no cravo :

Sempre que ouço fica-me a cantarolar horas dentro da cabeça.

E acabo com Marcelle Meyer ao piano:
Mas que magnífica! Tocava-se muito bem, nos anos 50 !

Marcelle Meyer foi uma pianista francesa do entre-guerras (1897-1958) contemporânea de Milhaud, Poulenc, Honnegger, Satie, Ravel, que se dedicou à música de Rameau, pouco divulgada na época.

Marcelle Meyer retratada no "Grupo dos Seis"



quinta-feira, 26 de junho de 2014

Incêndio na Glasgow School of Arts de Mackintosh :(



Não sei porque só agora soube do desastre: a 23 de Maio passado, passou pouco mais de um mês, um incêndio consumiu boa parte da Glasgow School of Arts, um dos mais relevantes edifícios de Charles Rennie Mackintosh e um marco histórico e artístico na capital escocesa. Concluído em 1899, parecia um castelo escocês com elementos orientais, na visão modernista, geométrica, austera, de Mackintosh.



Se foi notícia cá, passou-me despercebida; provavelmente um minuto final ou um canto de página, que isto não mete bola nem mexericos, nem colunáveis ou papas.

Foi uma actividade artística (com espuma expansiva) que deu origem ao fogo, devido à explosão de um projector. Muitos cursos estavam em funcionamento, mas a evacuação foi eficaz e rápida. Só o edifício sofreu danos, muitos irreparáveis; se a maior parte da estrutura resistiu e permite restauro, já muito do interior e do espólio ficou em cinzas.

O mais lamentável provavelmenete é a famosas sala de leitura e sua biblioteca, reduzida a cinzas.

Era assim:
.

O estilo inimitável de Mackintosh notava-se sobretudo nas janelas:

As janelas da sala de leitura




Estive duas vezes em Glasgow, em 1993 e 2007, e estive sempre muito bem, com chuva ou com sol. A arquitectura da cidade é magnífica, assisti lá a um Peer Gynt excelente, e a paisagem da Escócia está ali tão perto -  alguns quilómetros a norte e estamos em terras de Glens. Tenho por tudo isso muita pena do desastre que caiu sobre a GSA.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Ars - no meio de salinas de Ré, um porto e a torre sineira mais alta da ilha.


Há certamente aldeias ou vilas mais merecedoras da classificação "plus belles villages de France" do que esta Ars-en-Ré; embora a ilha tenha sido invadida e saqueada por ingleses e holandeses, falta a Ars fazer-nos sentir História ou Arte. Mas é certamente airosa, florida, de arquitectura coerente e ainda autêntica ao longo das ruas e vielas ("venelles"). Casas de um a três pisos no máximo, fachadas brancas ou branco-sujo, janelas com portadas ou venezianas de madeira à boa maneira mediterrânica em cores suaves - azul, verde, cinzento.

E, claro, as omnipresentes bicicletas, às centenas.

A entrada da vila, junto ao porto, bordada de esplanadas.

Aquele edifício junto ao cais, à esquerda, foi em tempos a estação de combóio que serviu a ilha até 1935.

Lá dentro da vila é assim: caminhando ou pedalando, sempre um gosto.

Portadas venezianas e rosas tremedeiras, o bilhete postal.

O centro é a Place Carnot: tem a igreja de St. Étienne e a Maison do Sénéchal, com o seu torreão muito peculiar.

O portal da Igreja, romano-gótica (séc XI-XV)

A invulgar torre sineira, em flecha octogonal de 40 metros.

Esta casa já foi uma mercearia (épicerie) durante anos, agora é uma épicerie gourmande - ou seja: serve também comidas e bebidas. O pratinho de gambas estava excelente !

A Maison du Sénechal, único exemplar de edifício renascentista em pedra, começou por ser a sede do governador da ilha - o colector de impostos para o Rei e para a República.

Não faltam ângulos bonitos na Place Carnot.

Mas há surpresas modernas, como esta galeria de arte que muito me agradou:

Gilles Candelier - Paradoxes

O passeio à noite - e eram mornas as noites de Junho - sabia pela vida, depois de bem comido e regado.


La doulce vie. É difícil encontrar mais luminosa e harmoniosa suavidade.



domingo, 22 de junho de 2014

Ré nature


Et voilá
, a minha iniciação como repórter da N.G. na ilha de Ré :)
A minha compacta low cost, levezinha, é que tem muitas limitações, do fotógrafo nem se fala. Mas dá uma ideia.

Os 'marais salants' são uma das principais fontes de rendimento da ilha. Além do valor económico, constituem também um ecossistema em si, frequentado por várias espécies de aves.

A pequena e muito esquiva garça branca (egretta garzetta) :


Espantoso foi um bando que passou em voo raso ao meu lado: o som de todas as asas em uníssono, zum-zum-zum, a cortar o ar, era impressionante. Parecia uma frota de jactos de nova geração... drones ? ;)

Com outra máquina teria ficado maravilha.

E esta é o pernilongo das salinas, de asa negra (échasse blanche - Himantopus himantopus), no seu ecossistema ideal.




Sou capaz de ainda pôr aqui qualquer coisa mais sobre Ars e outras vilas da ilha. Fica para já um cheirinho dos prados floridos e das famosas Roses Trémières.

As papoilas já eram raras.

Um tufo delas é uma alegria.

Rosas tremedeiras; são como as hortênsias nos Açores: por toda a parte. Lindas.

A torre sineira de Ars lá ao fundo, água é o que não falta, dentro e à volta da ilha. Waterworld.

Pronto, de fauna e flora chega por hoje :)



quinta-feira, 12 de junho de 2014

Ré - regresso a uma ilha



Nada como voltar a lugares que nos deram felicidade.
Há quem veja o paraíso nas ilhas tropicais ou nas paragens exóticas. Por mim, se e quando precisar de paraíso, a Ilha de Ré é o que tenho de mais parecido e à mão. E a aldeia de Ars-en-Ré é perfeita para lá morar uns dias. Não é por acaso que o Huffington Post a colocou em primeiro entre 10 vilas francesas de 'charme'.
Vou por isso uma semaninha, entre o azul do mar e o que pinta as fachadas caiadas, entre o ar fresco da maresia e um bom crepe salgado com um pinot blanc.

Desta vez não há festival, hélas, o Ré Majeur já terminou por esta altura. Paciência para os ouvidos, que se contentem com o silêncio das ruas sem carrros, e regalem-se os outros sentidos.


Links:
Artigo do Huffington Post
Un des plus beaux villages de France

Deixo uma 'cançoneta' de Claude Nogaro:

domingo, 8 de junho de 2014

Sibelius, um finlandês impetuoso e empolgante


Música para um domingo de Junho.

Sibelius foi sempre controverso, havendo desde quem o endeuse a quem denuncie a sua obra como pobre, convencional e irrelevante. Na maioria dos casos, há preconceitos em jogo, em particular das correntes modernistas. Seja como for, é justamente um dos orgulhos dos finlandeses, e conseguiu tanspor para música os ambientes e estados de alma nórdicos.

Um dos discos que colocaria entre os 10 melhores de todos os tempos é a gravação da 2ª e 5ª sinfonias por Colin Davis e a LSO. Volto a ele com frequência, e o entusiasmo nunca mingou.


Além de brilhante sinfonista, Sibelius era um excelente violinista (embora não virtuoso) e compôs em 1903 um invulgar concerto para esse instrumento, ora melancólico ora impetuoso. É o brilhante 3º movimento, allegro ma non tanto, que hoje deixo aqui, uma espécie de cavalgada vertiginosa em forma de polca em ritmo 3/4 que à primeira 'vista' nada parece ter de nórdico - mais parece o avançar das hordas mongóis de Kublai Khan ou música para o Palio de Siena, excitante até ao fim. Disse Sibelius que o compôs como uma dança esvoaçante sobre a vastidão da paisagem finlandesa.
Será a dança feérica das auroras boreais ?

Abre nas cordas de graves da orquestra, simulando percussão, para uma entrada súbita do violino, que não mais se calará, obsessivo, imparável, exuberante, heróico.
[Claro que compensa regular o volume upa upa ]

Joshua Bell, dir. Esa Pekka Salonen


David Oistrach, dir. Gennady Rozhdestvensky

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Hercules de Handel na Ópera da Bastilha (2004) - Bohlin, DiDonato et alli


Já 'toda a gente' deve ter visto o Hercules que William Christie dirigiu na Ópera da Bastilha com Joyce DiDonato e Ingela Bohlin. Está editado em DVD.

O canal Mezzo tem andado a passar esse registo e num destes dias consegui vê-lo na íntegra. Deve ter sido memorável para quem assistiu - há muito não via uma récita tão magnífica. As Arts Florissants de Christie estão ao seu melhor nível - insuperável - e o canto é desempenhado por vozes que é um permanente gosto ouvir; além das duas protagonistas, destaco o Hyllus de Toby Spence. A encenação não é a meu gosto, sobretudo a lata de crude (?) azul e amarela, mas já se viu pior; e a teatralidade dos cantores transmite uma intensidadade rara, com destaque para a excelente actriz que é DiDonato.

O tema é o ciúme, o mais absurdo e doentio, que mata aquele que se ama. Handel descreve os estados de alma (a personagem de Dejanira é uma obra-prima) com uma precisão e sensibilidade que me espantam, tendo em conta a época e a personalidade dele. São de sobra os momentos de antologia, escolhi colocar aqui alguns que me tocaram mais.

Hercules, HWV60, de Handel
Ópera da Bastlha, 2004
Les Arts Florissants, dir. William Christie
Iole - Ingela Bohlin, soprano
Lichas - Malena Ernman, mezzo-soprano
Hercules - William Shimell, baritone
Hyllus - Toby Spence, tenor
Dejanira - Joyce DiDonato, soprano



Ária "Begone, my fears, fly hence, away"


Côro "Jealousy! Infernal pest"
Fantástica a opção cénica aqui, de arrepiar a música.


Joyce, Joyce, não há igual.


A famosa "Where shall I fly"

Finalmente,
Iole de Ingela Bohlin, a soprano surpresa !


Uma ária simplesmente genial...
Justiça foi feita a mais uma bela ópera, injustamente menorizada, do caro Sassone.

domingo, 1 de junho de 2014

O café do Jardim Botânico de Akureyri


Mais um dos meus sítios improváveis.


Akureyri fica muito perto do círculo polar, a 65º N de latitude. Não são de esperar jardins botânicos e muito menos cafés ao ar livre.

Pois... mas mais uma vez, é de coisas assim que se faz o gosto que ainda vou tendo pela raça: um sítio que é um sucesso de civilização. Ver para crer.


Akureyri tem a sorte de gozar um clima relativamente ameno para aquelas paragens, mas mesmo assim, numa ilha sem floresta, feita de terrenos ermos, pedregosos ou lamacentos, quando não de lavas, e de muito frio e neve, que Jardim Botânico pode haver?

Este:

O 'Lystigarður Akureyrar'

Delphinium


Capuchinha e Lobélia






Delphinium de coração preto

Delphinium branco

Amor-perfeito

Colombina (Aquilegia)

Dictamus Albus (Fraxinela, Sarça ardente)

Flôr do cardo

Morango sivestre

Papoilas

Tristonha e cinzenta, a Islândia ?

Mas o que me deixou aos pulos, quando vi na net, e com vontade de embarque imediato, foi o café no Parque. Ah Islândia, bendita sejas (e já Borges * te bendizia! ), és uma belo pedaço de Europa.

O ' Café Björk '.

Esplanada a 65º N.



A janela panorâmica do Björk, em sintonia com os caules de árvores circundantes


Depois disto tudo quis saber alguma coisa de Akureyri. Não é nada de especial, cidade piscatória de que sobram algumas casas de madeira do estilo nórdico tradicional; mas, que tem Akureyri no centro e que é a maior atracção, onde se reúne toda a gente sobretudo em dias soalheiros ? O edifício mais icónico?

Um café ! O Bláa Kannan :

O centro de Akureyri "é" o Café Bláa Kannan (Caneca Azul).

Estou conquistado !

A primeira vez que li o nome 'Akureyri' foi no Tintin, "A Estrela Misteriosa" :



Akureyri, um dia destes, vou aí provar uns cafezitos.

-----------------------

*  'A Islandia', de J L Borges :

De las regiones de la hermosa tierra. 
Que mi carne y su sombra han fatigado. 
Éres la más remota y la más íntima, 
Última Thule, Islandia de las naves.