sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Regresso a Casa do Meteorologista


Acabei recentemente de ler O Meteorologista (Le météorologue, Seuil, 2014) de Olivier Rolin, e vi o filme O Regresso a Casa de Zhang Yimou, em parte motivado por Jorge Leitão Ramos, bem haja. Livro e filme têm alguns pontos de contacto: o personagem central é feito prisioneiro por uma ditadura (soviética, maoísta), denunciado sabe-se lá porquê, talvez porque pensar é de "direita", e entra para um campo de trabalho onde cumprirá uma dezena de anos. A família, em ruína, sofre a dobrar, pela privação, pela falta de notícias, pelas pressões e humilhações a que fica sujeita - filha ou esposa "do bandido" - toda a vida à espera e toda a vida ostracizada. Vida inteira (ou quase) perdida por, para, nada. O regresso vem sempre tarde de mais. Zhang Yimou filma com doçura, contenção, sensibilidade, uma abordagem que surpreende. E chove, chove quase sempre, do princípio ao fim, como se todo o universo chorasse.


São duas obras que insistem em não esquecer nem "negar" os holocaustos russo e chinês; muito se brada contra o negacionismo do holocausto germânico, mas por vezes os mesmos tendem a encolher os ombros ou arranjar escusas para uma denúncia igualmente violenta e permanente dos crimes do marxismo-leninismo, esse dogma tão (ou mais!) assassino como a leitura à letra do Corão. Estão de parabéns Olivier Rolin e sobretudo  Zhang Yimou, que ainda vive sob um regime persecutório, descendente do maoísta.

No caso do livro, a vítima é um dedicado especialista em meteorologia que cai nas más graças do partido ao tempo de Estaline, e é enviado para o gulag das ilhas Solovki (Solovestski) de que já aqui falei uma vez, sítio de beleza transcendente não fosse a ocupação do mosteiro pelo campo de trabalho, onde funcionários do sistema são obrigados a rebentar com todos os prisioneiros a seu cargo. O meteorologista ia sobrevivendo graças à sua admiração pela natureza e ao seu jeito para desenhar: pensando na filha, fazia ilustrações de animais, plantas e flores, mas acabará por cair no desânimo, até chegar o seu fim numa execução em massa pelo terrorismo de estado.

Embora não seja bom sistema fazer posts à custa de texto alheio, recorro a este excerto de um artigo de Rui Bebiano, artigo que traduz muito do que no livro encontrei, do que o livro me deu.

(...)
Alexei Feodosievitch Vangengheim, nascido em Krapivno, uma aldeia da Ucrânia, era “um homem que se interessava pelas nuvens e fazia desenhos para a sua filha” apanhado, por duas vezes, em circunstâncias que o empurraram para o abismo no qual viria a desaparecer até ser recuperado pelo escritor.

A primeira corresponde à prisão como “sabotador”, em resultado de uma denúncia anónima apresentada por alguém que se sentia despeitado pelo seu sucesso profissional. A segunda, vivida após uma estadia no campo das ilhas Solovki, onde a partir de 1923 passara a funcionar o primeiro campo do Gulag, ocorreu quando, no contexto do Grande Terror, uma ordem assinada por Nikolai Yezhov, impôs um contingente fixo de “contrarrevolucionários e sabotadores” a abater. A ordem escrita apontava para um total de 750.000 prisioneiros, que cada campo, mediante uma quota rigorosamente fixada, deveria fuzilar com um tiro na nuca em lugar não revelado. Uma média de 1.600 execuções por dia durante os últimos cinco meses de 1937. A de Alexei Feodosievitch seria uma delas.

Rui Bebiano, O meteorologista e o “dever de memória”

As últimas páginas de Rolin são particularmente chocantes, quando ele abandona a narrativa sobre o meteorologista e comenta o que foi a era do terror na fase pior do regime, confrontando essa realidade com a ilusão em que se embalavam os intelectuais do ocidente.

Pena é a edição num português feio e cheio de gralhas (erros mesmo ?), seguidor do Acordo Ortográfico, vergonha da Sextante e da (má) tradução, puá.


No caso do filme O Regresso a Casa, remeto para o excelente artigo de Leitão Ramos no Expresso ( que contrasta com a, digamos suavemente, estupidez dos preconceituados críticos do Público).

Para mais, na China deste século XXI- a fábrica do nosso globalizado planeta, o lugar onde o sistema financeiro mais dinheiro acumula - quem se quer lembrar do passado ? Na urgência de ganhar dinheiro, o mais possível e muito depressa, quem quer recordar as prisões arbitrárias, a submissão continuada do tempo do Bando dos Quatro? Surpreendentemente, Zhang Yimou parece que quer - e traz-nos um filme pungente em que uma filha trai, uma mulher enlouquece de dor e humilhação ao ponto de perder a memória, e um homem acaba por dedicar o resto da vida a uma esposa que já nem o reconhece, mas o espera, mês após mês, na estação de comboio, onde ele nunca chegará. 
(...)
E fabricado com a suprema elegância formal de que Zhang Yimou (quase) nunca abdicou - que bem que ele filma !


Jorge Leitão Ramos, Que ninguém esqueça !


Gong Li, a actriz favorita de Zhang Yimou, um desempenho que permanece na memória.

À espera na estação, a história de uma vida.

Pãezinhos para o marido em fuga, a estética de Zhang Yimou. Poucas palavras, as imagens falam.

A leitura das cartas que ele próprio escreveu. A proximidade possível.

A estética maoísta, rígida, agora uma mera palhaçada.

Os funcionários do partido vigiam à porta; chove, chove sempre.


Um filme assim em exibição no Verão é prenda demasiado requintada para se perder. É aproveitar este fim-de-semana.


2 comentários:

Gi disse...

Fiquei com muita vontade de ver esse filme.
Et pourtant... Vou desfazer-me em lágrimas?

Mário R. Gonçalves disse...

Penso que não, Gi, é comovente e triste mas não emociona a esse ponto. A estética cuidada é capaz até de prejudicar a emoção.