Devia ter lido este livro quando era miúdo, na idade em que li "Com Byrd na Antártida" ou "Com Darwin na América do Sul". Mas Christiane Ritter é mais séria e autêntica - mais adulta - a relatar a sua estadia aventurosa no deserto gelado subpolar, muitíssimo bem narrada, com descrições preciosas e deslumbrantes; há muito de pintura ou de poema nessa escrita fascinada. O livro obteve grande sucesso quando foi publicado e é um clássico da literatura sobre o Ártico.
Corria o ano de 1930, entre as duas guerras, a Europa estava confusa, deprimida, desagradável e perigosa. O crash e a longa depressão americana tinham acabado com o breve interregno democrático e as ditaduras iam alastrando. Christiane Ritter, austríaca de 36 anos, foi convidada pelo marido, caçador de peles no norte de Spitsbergen - a ilha maior do arquipélago norueguês de Svalbard - a visitá-lo durante um ano, para pôr em dia longas leituras em atraso e dormir a contento as horas de sono em falta.
Gråhuken (Grey Hook) no Woodfjord, local da cabana onde Christiane viveu.
O convite era tentador, ainda que a desolação da prolongada noite ártica pudesse assustar: Christiane ficaria alojada numa minúscula e tosca cabana de madeira, na margem do Woodfjord, a cerca de 80º de latitude, sob quarenta graus negativos que sobem a quinze (negativos) no Verão. Só uma longa jornada sobre o acidentado gelo permite contactar com outras cabanas de caçadores - muitas vezes desertas mas ainda assim acolhedoras.
Christiane irá viver momentos de isolamento profundo, recolhida na exígua cabana durante longas e ventosas tempestades, ou vagueando pela noite ártica sem horizontes nem referências; por outro lado, vive a experiência de flutuar num mundo irreal, fantástico, de luminescências brancas por entre negridão, noites estreladas nunca vistas, e, quando se acendem feéricas as luzes boreais, uma festa intensa dos sentidos.
Alguns excertos:
"The world is in deep twilight, a perpetual twilight from which it can no longer emerge. There is no wind, and a transparent mist carries the waves of the last dying light. Everything, near and far, is unreal, without spatial dimension. The frozen mountains soar up into the dark grey sky like white shadows. Weightlessly, they seem to sway.
With a soft musical note, the dark water nestles in the round white bays and in the river estuaries, and glides in the calm obscurity over to the broad sea, which in the distance seems to melt into the grey of the sky.
The scene has nothing earthly in it. Withdrawn, it seems to lead its own contained life. It is like the dream of a world that is visible before it takes shape as a reality."
- O ritmo luminoso das esferas -
"It is as though we are on another planet, somewhere else in universal space, where in nameless peace bright mountains rest and the light speaks with a mute eloquence.
We go out into he bright land. In the valley the wind howls, over the plain the snow is driven like a glistening river, but calm and unmoved the mountains soar into the star-glittering heavens.
Bright veils detach themselves from the sky. As though stirred by the gentlest breath of wind they float in ever bright and broader waves across the whole heaven. We watch the shining rhythm of the spheres until the veils disappear, and come to ourselves, small beings struggling forward mute and heavy through the storm on the earth."
"It is full moon. No central European can have any idea of what this means on the smooth frozen surface of the earth. It as though we were dissolving in moonlight, as though the moonlight were eating us up. It makes no difference when we go back into the hut under the snow after a moonlight trip. The light seems to follow us everywhere. One's entire counsciousness is penetrated by the brightness; it is as though we were being drawn into the moon itself.
... what I would like best of all is to stand all day on the shore, where in the water the rocking ice floes catch and break the light and throw it back to the moon."
- Deserto vermelho -
"I can scarcely believe my eyes. A radiant red dawn illuminates a land that is itself red. Red is the sea, red the rocks, red the beach, and the square driftwood hut is tinged with red.
(...) meantime Karl, who does not allow himself to be bewildered either by colours or by geological images, has been in the pink hut, making some glaring red cocoa. "I had to make the cocoa so thick," he says apologetically, "so that you would not see how red and sandy the water was that I had to make it with".
Falta talvez a dimensão psicológica, entrar mais a fundo nos sentimentos e nas relações humanas - eram três a habitar a cabina, o casal e um caçador mais jovem, amigo do marido. Christiane Ritter dedicou-se totalmente ao irresistível vazio do mundo que a rodeava, e tal como o marido, preferiu o silêncio contemplativo - é esse testemunho que as suas palavras relatam.
A Woman in the Polar night
Christiane Ritter
Greystone Books, UApress Alaska
Nota: a evitar o prefácio presunçoso e irrelevante de L. Millman
3 comentários:
Só de ler a sua descrição do livro ja da vontade de lê-lo. Você sabe se há uma versão em português? Meu inglês ainda não é tão bom pra desfrutar da leitura desse livro.
Marcel, infelizmente nunca foi traduzido para português. Há uma tradução francesa na DENOËL, e uma edição mexicana em espanhol na Herrero, de 1964.
Li já algumas vezes um exemplar reduzido e compilado nas Seleções.
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