À espera de melhores dias, consegui terminar um texto que já vinha preparando há uns tempos.
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Diria que esta 1ª sinfonia de Brahms é uma das mais narrativas que conheço - a música vai fluindo como uma história complexa que nos é lida, ao longo dos capítulos, através de peripécias, emoções, convulsões, pausas, regressos. 'Never a dull moment' - não há momentos mortos, acontece sempre algo de novo e prepara-se quem ouve para uma reviravolta emocionante no enredo, quase como numa novela policial ou num romance para a juventude. Digamos, um Graham Greene, um Tolstoi, um Stevenson.
O terceiro e quarto andamentos são arrebatadores em ritmos e orquestração, e o final dos mais apoteóticos que conheço. Em termos de construção musical, a primeira de Brahms deve ser uma das obras sinfónicas mais bem compostas de sempre, nesse sentido de aliar estrutura e dinâmica, espaço e tempo, num todo narrativo coerente. Não será inovadora na linguagem musical, certamente, nem os rasgos de génio criativo são fantásticos como os de Beethoven, mas mantém o ouvinte em tensão, suspenso nas sonoridades e invenções rítmicas que se desenrolam em cascata. Já li algures que Brahms escrevia no tempo e no espaço (precursor da relatividade ?) : as linhas musicais e o contraponto constroem uma rede multi-dimensional !
Como a música barroca, Brahms foi de certa forma redescoberto pelo digital. A agulha sobre vinil não se sai bem com as fortes massas orquestrais, e a visão que havia de Brahms - músico de 2ª, acomodado, de boa vida, conservador e alheio à revolução musical já em curso - não lhe fazia justiça: produziam-se pastelões sinfónicos às vezes enfadonhos. Só há poucos anos a genialidade inventiva do contraponto e dos ritmos brahmsianos foram devidamente valorizados.
As duas versões modernas que mais aprecio são a de Günter Wand com a NDR e a de David Zinman com a Tonhalle de Zurich: tensas, contrastadas, dinâmicas, sempre alerta. Se Vladimir Jurowsky, com mais solenidade e macieza, vence quando se procura algum apaziguamento, Masur, o saudoso Kurt Masur, tem a interpretação mais meditativa, contemplativa, evitando drama e tensão - é a melhor escolha alternativa, mas a obra até parece outra ! O que ele tem, isso sim, é a melhor orquestra, a Gewandhaus Leipzig.
A primeira página.
Disponíveis no YT só encontro as versões de Wand e Zinman. As diferenças de tempo ( Gunter Wand 43'41'', Zinman 44'54'') acentuam-se mais no 1º andamento - Wand é dois minutos mais rápido - e no 2º e no 4º, em que Zinman 'ganha' esses dois minutos. Masur amplia a duração para...57.06 ! Mais um quarto de hora, é obra.
O poderoso 1º andamento tem um arranque bélico, a lembrar o ritmo do tambor das trirremes, em ritmo ternário 6/8, obsessivo (ver pauta acima), com os violinos a criar um pathos intenso. Depois, durante cerca de quinze minutos, os "fios da história" apresentam-se, numa rede de linhas cruzadas, mantendo sempre um inquietude, uma ansiedade não resolvida. Se estivermos muito atentos ouvimos uma pulsação "tatata-tum" da 5ª de Beethoven em contraponto. Aos 9' 20'' chegamos ao cume, e lá se ouvem de novo as quatro "pancadas do destino" da 5ª, que voltam aos 11'. Estamos sempre à espera , "então?", que venha o anticlímax de paz e conforto. Não vem. Esta não é música de um burguês satisfeito, pelo contrário, espelha angústia e conflito. Talvez por isso me custou a entrar nesta sinfonia, é rebarbativa, ao contrário da minha imediata e entusiástica adesão à 2ª.
Começo então com Zinman e a Tonhalle:
2º andamento: aaaah! Chegou agora o repouso ? Brahms era um especialista em adagios prongados de grande lirismo, como o da 2ª sinfonia. Este só tem 8 minutos mas é para lá de genial. Compôr assim não é de homem, só de deus. A partir de 6'20'' entra o violino em solo e planamos no firmamento entre nebulosas e galáxias, e queremos lá ficar. Mas a paz celestial é enganosa.
Agora por Gunter Wand e a NDR:
O 3º andamento parece, mas não é, um Scherzo de 4 minutos, uma história de aventuras pícaras entre montes e vales, perseguições e escaramuças, tréguas também: termina, finalmente ... em paz ! A tormenta passou, quem diria. Só que...
O 4º, ah o 4º ! Voltamos ao sério do primeiro, em 16 minutos. Um novo desenvolvimento na "históra" parece desenhar-se, acompanhado em pizzicato, num tom de intriga policial. Até entrarem as trompas alpinas, e percebemos que se anuncia algo de grandioso e dramático. O momento vem pelos 4'26'', com um novo tema, uma longa melodia à Brahms mas a evocar claramente a 9ª de Beethoven. Só que o trabalho de composição, vertiginoso - variações de orquestração, contraponto, crescendos e stacattos - se constrói em enorme distanciamento de Beethoven. Há um primeiro desfecho de tensão a seguir aos 11', com o regresso à anterior melodia. Mas as coisas 'descontrolam-se' de novo, um pouco e aos 15' temos o clímax final, que se espraia numa intensidade inaudita até à tal apoteose algo brusca com que termina. Sem paz, sem redenção, ninguém feliz para sempre, tudo em aberto para nos deixar exaustos de tanta tensão não resolvida. Quer-nos causar uma apoplexia, Brahms, como quem nos diz, ah queriam um happy end à Mendelssohn, à Dvorak ? tomem lá e rebentem.
Voltamos à Tonhalle com Zinman:
E é ver os maestros no final, ofegantes e banhados em suor, como quem acaba de correr a maratona.
Pronto, queria prestar esta homenagem a uma obra prima de verdadeiro génio que não está nos tops de êxito nem enche salas facilmente, das tais que 'primeiro estranha-se ...'
O primeiro contacto que tive com o conceito de "terrorista" foi com Hergé, no "L'Oreille Cassée", que se passa numa república fictícia da América do Sul. Chamavam-se "bombistas", eram mais ou menos anarquistas a soldo da facção da tropa na oposição que queria derrubar a tropa do governo, ou vice-vera, visto que os regime militares alternavam em grotescas ditaduras.
Era tudo tão longe, tão longe da Europa. As bombas estouravam com alguma frequência, para "desestabilizar", ou em atentados direccionados a algum general incómodo. Hergé tratava o tema em caricatura, claro. O corporal Diaz era uma anedota: queria vingança do general gorila Alcazar, que o tinha demitido.
La liberté ou la mort, slogan tão desgastado.
Mudança da hora...
E como este, há outros fiascos hilariantes. Visto de Bruxelas, hoje, este bombista é quase um romântico. Felizmente, Hergé nunca veria a sua Bélgica massacrada por Caporais Diaz lunáticos de Maomé, mil vezes mais mortíferos, sem alma nem pinga de compaixão.
Acabou em anedota, anedota com nova anestesia.
Quando me falarem em 13 à mesa, gatos pretos, datas a evitar, lugares assombrados, vou-me fartar de rir. Devo ter sido beneficiado com uns vinte azares, imprevistos infelizes, catástrofes únicas, em cascata, concentradinhas nestes três ou quatro dias seguidos.
Qual era a probabilidade ?
Afinal, não é Deus quem joga aos dados.
É o diabo.
Agora o que é feito aos refugiados, sāo muitos mais que 8, uma centena.
Só a imagem bonita, moderna e única que a Europa daria ao mundo valia bem a despesa. Mais ninguém é capaz de o fazer, daríamos uma superior lição. E por arrasto acabava-se a mania da esquerda+ ser anti-UE.
Mas também, se soubesse o que sei hoje, nunca me tinha metido nesta.
De Patrick Modiano (Nobel 2014) comecei há pouco a leitura do Café de la Jeunesse Perdue. Tem tudo o que há de bom na literatura: descrições (cafés e livrarias de bairro, ruas de Paris), retratos e desventuras (dos boémios), mistério, personagens solitárias, sem passado nem futuro, narrativas múltiplas e não lineares, e sobretudo um à-vontade fluentíssimo com as palavras e a língua francesa que é um regalo de ler. Que tenha um final infeliz, é o desfecho que o leitor já espera.
O único extracto que consegui, e bom trabalho me deu, é este que se passa na livraria Mattei :
A Mattei, como muitas outras, já não existe. Nem o café Condé, onde se situam as mais felizes páginas da história. Mas imaginar é a melhor oferta que recebemos de um bom livro.
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Da enorme discografia do maestro Harnoncourt, deixo aqui uma lista do que tenho e sei que é escolha obrigatória, muitas vezes insuperável.
Sendo Harnoncourt pioneiro na interpretação, é no reportório clássico mais batido que se mostrou... imbatível: obras corais, sinfonias, concertos e óperas. Os anos 80 e 90 foram os seus anos de ouro, como de toda a nova escola de interpretação de que ele foi pioneiro e mentor: Gardiner, Hogwood, Parrott, Pinnock, Koopman, Herreweghe, Jacobs, Goebel, Christie.
O novo século trouxe a maturidade interpretativa com que abordou um reportório mais vasto.
"Fazer música com 49% de conhecimentos e 51% de intuição." Nikolaus Harnoncourt
De Bach, as duas Paixões com o Concentus Musicus, superlativas, os Concertos Brandeburgueses, a Missa em Si menor, mas mais que tudo: as Cantatas !
De Händel, pouca coisa: um Saul com Varady e Fischer-Diskau, muito bom; uma Theodora precursora; a Ode a Santa Cecília, belíssima, de 1978.
De Haydn, a oratória Criação, com o Concentus e o côro Arnold Schönberg; o Stabat Mater e várias Missas; e a ópera Armida, com Cecilia Bartoli. Curiosamente, interessou-se pouco por concertos ou sinfonias de Haydn.
De Mozart, o seu compositor de eleição, tudo, mesmo tudo, o que é orquestral. Os Concertos (piano, violino, flauta e harpa, clarinete), as Sinfonias (excelente a 35, já em 2014 !), as Óperas - em particular La Clemenza de Tito, o Idomeneo, Cosi fan Tutte (com a orq. e côro de Zurique, uma das primeiras escolhas), a Flauta que ainda prefiro entre todas; o Requiem (em 2003, de referência) e as Missas, tudo com o Concentus em estado de graça.
De Beethoven, também tudinho. Sinfonias (com a Chamber Orchestra of Europe, um must), concertos, a Missa Solene, o melhor Fidelio digital, as Aberturas (outro must).
De Schumann, as Sinfonias também, uma referência, duas vezes: com a C.O.E. e depois já com a Berliner.
Correram mal as incursões pela música italiana. Vivaldi, Verdi (Aïda, Requiem) não foram bem servidos pela alma germânica de Harnoncourt. Estranhamente, também em Brahms o maestro esteve menos bem, com gravações anémicas, simplesmente medianas. Ainda se aventurou no romantismo tardio com Dvorak (bem !) e sobretudo com Bruckner - uma excelente 5ª Sinfonia, e uma 9ª fenomenal, com a Filarmónica de Viena (2002).
Without doubt, Nikolaus Harnoncourt has contributed enormously to the history of musical interpretation and hopefully he will do so for many more years to come. Without him, the historically informed performance practice as we know it today would hardly be possible.
[Gramophone]
Continuar a ouvir a sua música (e continuaremos durante décadas, seguramente) é imperativo, irrecusável, é o tributo que a História lhe prestará. Para mim, será também ouvir um amigo valoroso.
Este ano já está marcado, mal marcado. Nikolaus Harnoncourt, um dos maiores músicos da actualidade, maestro e estudioso da música barroca e romântica que deixou interpretações inigualáveis e inesquecíveis, faleceu hoje na sua Viena, com 86 anos.
Não desaparece para mim, que o ouço regularmente, uma das muitas dezenas de gravações de Bach, Haydn, Mozart ou Beethoven por Harnoncourt está sempre no topo de uma das pilhas de discos em audição. Poucos homens se poderão orgulhar de ter produzido tanta obra de mérito nos últimos 50 anos como Nikolaus Harnoncourt, seja com o Concertgebow de Amsterdam, com a Chamber Orchestra of Europe, ou com o seu imaculado Concentus Musicus Wien.
Falta vai fazer, sim, o esfuziante entusiasmo com que dirigia, uma entrega total que contagiava quem assistia. Harnoncourt sabia fazer sua a obra que dirigia, e isto é raro, muito raro. Salve, maestro.