sexta-feira, 22 de abril de 2016

Paris de memórias, Paris de cafés na bruma, Louki das zonas neutras


Volto ao meu primeiro Modiano, "Le Café de la Jeunesse Perdue". Já tinha ouvido dizer , mas não confirmado, que ele escreve praticamente sempre o mesmo livro, com lugares e nomes diferentes, mas este foi o primeiro e seduziu-me. A Paris dos anos 60 é o fundo desta pequena história melancólica, que respira a cidade por todos os poros. Ruas e avenidas, a beira-rio, alfarrabistas, esquinas e cafés, avenidas e bairros residenciais. Quer a época, quer a foto da capa, quer a escrita de Modiano, tudo sugere uma Paris brumosa a preto e branco. Há uma franja de gente boémia que se encontra num café 'habitual' ao fim do dia, uns convivem e bebem, outros lêm ou escrevem; frequentam às vezes palestras em casa de um dentre eles. Gente triste, em regra, que se arrasta de dia e só renasce quando entra no ambiente fumarento e ruidoso do café onde cada um cala os seus segredos.


Que a cidade seja tão cinzenta nos mesmos anos em que Londres começava a renascer com grande vitalidade à volta de uma nova forma de estar na vida e de fazer música, é um contraste que está por explicar. Vinha aí o Maio de 68...

Patrick Modiani :

"J'ai fait de Paris ma ville intérieure, une cité onirique, intemporelle où les époques se superposent et où s'incarne ce que Nietzsche appelait «l'éternel retour.» Il m'est très difficile maintenant de la quitter."


"Talvez ela tivesse ido ali parar por acaso, como eu. Estava no quarteirão e queria abrigar-se da chuva. Sempre achei que certos lugares são como ímans e que somos atraídos por eles se andarmos por perto. E isso de forma imperceptível, sem sequer darmos conta. Basta uma rua em declive, um passeio ensolarado, ou então um passeio à sombra. Ou uma chuveirada. Tudo isso nos leva ao ponto preciso onde devemos ir encalhar. Parece-me que o Condé, pela sua situação, tinha esse poder magnético e que se fizéssemos um cálculo de probabilidades o resultado iria confirmá-lo. Num perímetro bastante alargado, era inevitável derivarmos para lá."


"Das duas portas do café, ela  entrava sempre pela mais estreita, a que chamavam porta da sombra. Escolhia sempre a mesma mesa ao fundo da salinha. Nos primeiros tempos, não falava com ninguém, depois travou conhecimento com os habitantes do Condé cuja maioria teriam a nossa idade, eu diria entre dezanove e vinte e cinco anos. Sentava-se as vezes à mesa deles, mas quase sempre era fiel ao seu lugar, lá no fundo.
(...)
É preciso esclarecer isto: o nome 'Louki' foi-lhe atribuido a partir do momento em que ela começou a frequentar o Condé. Eu estava lá, numa vez que ela tinha chegado pela meia noite, e em que já só estavam Tarzan, Fred, Zacarias e Mireille, todos à mesma mesa. Foi Tarzan que exclamou 'olha, chegou a Louki. Pareceu de inicio assustada , depois sorriu. Zacarias levantou-se e, no mesmo tom de falsa gravidade Esta noite , eu te baptizo . De agora em diante, chamas-te Louki. E à medida que as horas passavam e que cada um a ia chamando Louki, penso que ela se sentia aliviada com o seu novo nome, sim, aliviada. De facto, quanto mais penso nisso, mais regresso à minha impresão inicial Ela refugiava-se aqui, no Condé. como se quisesse fugir de alguma coisa, escapar a um perigo."


Os pontos fixos.

"Nesse fluxo ininterrupto de mulheres, de homens, de crianças, de cães, que passam e acabam por se perder ao longo das ruas, gostaríamos de reter um rosto, de quando em quando. Sim, segundo Bowing, era preciso no meio do maëlstrom das grandes cidades encontrar alguns pontos fixos. Antes de partir para o estrangeiro, tinha-me dado um caderno onde estavam recenseados dia após dia, durante três anos, os clientes do Condé. Ela aparece com o nome fictício, Louki, e é mencionada pela primeira vez num 23 de Janeiro. O inverno desse ano foi particulamente rigoroso e alguns de nós nem saíam do Condé durante o dia inteiro para se protegerem do frio. O Capitão anotava também as nossas moradas de modo a poder-se imaginar o trajecto habitual que nos levava até ao Condé. Para Bowing era mais uma maneira de estabelecer pontos fixos."

As Zonas neutras.


"Lembro-me do texto que eu andava a tentar escrever quando conheci Louki. Tinha-o intitulado As Zonas Neutras. Havia em París zonas intermédias, terras de ninguém onde se estava na franja de tudo, em trânsito, ou mesmo em suspenso. Disfrutava-se uma certa imunidade. Podia chamar-lhes zonas francas, mas zonas neutras era mais exacto.(..) Tinha escrito como dedicatória: 'Para Louki das Zonas Neutras'. "


"A rua da Argentina, onde eu tinha um quarto de hotel alugado, era bem uma zona neutra. (...) O mais curioso nesta Rua da Argentina - mas eu tinha identificado algumas outras ruas de Paris semelhantes - , é que não correspondia ao bairro a que pertencia. não correspondia  a nada, estava desvinculada de tudo. Com aquela capa de neve, desembocava nos dois extremos sobre o vazio. "



Afinal a Paris das memórias de Modiano é tambem uma Paris de ficção, como ele diz - interior, onírica e intemporal. Essa Paris é Louki. E este livro é o melhor que li este ano, até agora.

[traduções minhas]


1 comentário:

redonda disse...

Eu comecei a ler o livro e depois interrompi a leitura, por falta de tempo ou porque quis ler outro primeiro. Tenho de voltar a ele.