domingo, 5 de junho de 2016

Poema do supermercado, Whitman e Ginsberg


Deparei há poucos dias (*) com este lindíssimo poema de Allen Ginsberg que nunca tinha lido, em que Walt Whitman é o principal interveniente, numa evocação que mais parece uma sentida homenagem. O supermercado é como um microcosmos da nação decadente, onde ambos andam à deriva, como deportados em país estranho. Há quem veja nele uma epécie de novo Inferno de Dante, onde somos guiados por corredores infestados de demónios. Mas Ginsberg, idealista da "beat generation", não esteve nunca em sintonia com Whitman, saudosista da Nação americana genuína.

Procurei traduções, mas não encontrei nenhuma decente. Aqui fica a minha tentativa.


Um supermercado na Califórnia

Como pensei em ti esta noite, Walt Whitman, enquanto caminhava debaixo das árvores por ruas travessas, a olhar para a lua cheia com uma dor de cabeça, conscientemente.

No meu faminto cansaço, e tentando comprar imagens, entrei no néon do supermercado de frutas sonhando com as tuas listas !

Que pêssegos e que penumbras! Famílias inteiras às compras de noite! Corredores cheios de maridos!

Esposas entre os abacates, bébés entre os tomates! – e tu, Garcia Lorca, o que estavas a fazer junto das melancias?

Eu vi-te Walt Whitman, sem filhos, velho furão solitário, remexendo as carnes no refrigerador e fazendo olhinhos aos garotos da mercearia.

Ouvi-te fazer perguntas a cada um: Quem matou as costeletas de porco? Quanto custam, as bananas? Serás tu o meu Anjo?

Deambulei à esquerda e á direita entre as pilhas brilhantes de enlatados, seguindo-te e sendo seguido na minha imaginação pelo segurança da loja.

Passeámos juntos por largos corredores na nossa solitária fantasia provando alcachofras, pegando em todos os petiscos congelados, e sem nunca passar pela caixa.

Aonde vamos, Walt Whitman? As portas fecham dentro de uma hora. Para onde aponta a tua barba esta noite? (Toco o teu livro e sonho com a nossa odisseia no supermercado e sinto-me absurdo).

Vamos andar toda a noite por ruas solitárias ? As árvores somam sombras às sombras, luzes apagadas nas casas, ambos ficaremos sós.

Vaguearemos sonhando com a América perdida do amor, passando pelos automóveis azuis na estrada, de volta à nossa silenciosa cabana?

Ah, querido pai, barba grisalha, velho professor de coragem, que América era a tua quando Caronte deixou de navegar a sua barca e tu foste para a margem enevoada, vendo a barca desaparecer nas negras águas do Letes ?

Berkeley, 1955


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Também tive uma fase de ódio e rejeição aos supers e hipers. Ficava doente lá dentro, sobretudo com enchente. Agora habituei-me, e se não é um lugar poético, passou pelo menos a rotineiro e indiferente.

Já agora, parabéns a ambos pelo aniversário recente - Whitman a 30 de Maio, Ginsberg na sexta passada, dia 3.



* The Paris Review

1 comentário:

Virginia disse...




Poema belíssimo e muito bem traduzido, embora não conheça o original.
Allan Ginsberg era um dos temas do 12º ano, juntamente com Kerouac e o seu On the Road. Gostei do filme biográfico que fizeram sobre a sua luta pela liberdade de expressão.
Benditos os loucos!

Detesto supermercados, mas de vez em quando lá vou...sobretudo a horas mortas e dias de semana quando aproveito ir ao cinema.
Obrigada.