sábado, 4 de novembro de 2017
Uma Tisana de Ana Hatherly
É lamentável mas só agora estou a ler com a devida atenção a obra escrita de Ana Hatherly. Foi um crime que cometi não a ter descoberto mais cedo.
A obra-prima talvez sejam as Tisanas. É uma espécie de diário na continuidade moderna do Livro de Desasossego de Pessoa, "pequenas narrativas" que são como poemas em prosa. O trabalho deslumbrante sobre as palavras e a língua é acompanhado pela construção de imagens e sensações inesperadas e desconcertantes, muitas vezes um violento abanão.
Fica aqui a Tisana 18:
Era uma vez uma cidade habitada por palavras em que cada uma vivia em sua casa com as portas fechadas mas constantemente se visitavam ou então saíam para a rua e passeando cruzavam-se com outras palavras e saudavam-se mas com o crescimento progressivo da cidade as palavras quando saíam para a rua começavam a chorar umas com as outras e chocando-se retiravam-se encolerizadas e regressavam a casa mas já não regressavam como haviam saído e dentro de casa aumentavam por um efeito de cólera morosa e lembrando sempre as outras palavras começavam crescendo dentro de suas casas e da próxima vez saíam para a rua já iam transformadas e quando encontravam outra vez as palavras passava-se outra vez a mesma coisa e regressavam a casa e continuavam a crescer e sempre em direcções e cresciam de tal modo que já não conseguiam fechar as portas e novos braços abriam as janelas e a cólera trepava pelas paredes e começavam a escavar o texto e ligadas ao andar de cima entrelaçavam à palavra do outro apartamento que também estava encolerizado e já chegava até ao telhado e subia pela antena da televisão e gritava encolerizado com as palavras dos outros prédios já subindo pelo céu acima e toda a cidade estava aos gritos e já não havia espaço para as palavras crescerem confundiam-se e as palavras estavam todas unidas irremediavelmente e gritavam todas ao mesmo tempo de modo que ao longe era um só grito enorme que mais longe se transformava num sussurro e de muito mais longe até não se ouvia nada.
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Quando ouço o meu País falar, e pior ainda nas redes sociais, parece-me esta cidade. Ao longe não se ouve nada.
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