Os aeroportos tornaram-se lugares de horror, o verdadeiro abominável 'mundo novo' em todo o seu esplendor de inferno. E isto desde que, claro, vieram as
low cost. Massificar é estragar, já se sabe - as coisas melhores são as que só estão ao alcance de alguns. Sempre será assim.
Ainda me lembro da expectativa alegre de voar numa companhia nacional - Swissair, British Airways, KLM, Alitalia - quando a chegada ao aeroporto marcava o início da aventura. "
Já me sinto em férias", pensava, e dizia, mal tinha o
check-in feito e me encontrava naquele lugar de fantasias e ilusões. Não havia multidão? Havia, sim, gente de todos os cantos do mundo, com as suas pastas, malas cheias de autocolantes, vestes exóticas. O que não havia era aflição, atropelos, angústia, bruteza; receio de não chegar a tempo, de que o voo não partisse, de que a porta de entrada estivesse a meia hora a pé, angústia de não poder fumar nas próximas oito ou dez horas, daquele bruáuá, daquela iluminação excessiva, daquela clausura. Não se passava as horrendas, feias máquinas que devassam as nossas malas para logo desaguar em infinitos zig-zagues de corredores de
duty-free, uma visão de inferno na forma do consumismo mais inútil, supérfluo, feio, idiota, gigantesco. E depois, corredores infindáveis de lojas e luzes e montras e balcões e assentos para comprar e comer, comer e comprar
- tudo o que há de pior !
Dezenas de
fast-food e cervejarias onde qualquer coisa com batata frita e
ketchup é servida às centenas; dezenas de montras super-iluminadas de relógios que já poucos compram, malas, malinhas e maletas, camisas e fatos, sempre alternando com mais um balcão de
pizza, seguido de joalharia, telemóveis, artigos electrónicos disparatados, chocolatarias, mas isto durante quilómetros de barulho e atropelos - há gente que leva tudo à frente, elefantes com trolley - e ainda as vozes no altifalante a dar notícias de partidas e voos cancelados, greves, pessoas em falta na porta de embarque, alterações no número da porta, '
não deixe as suas bagagens abandonadas', e não há um cantinho onde me sentar em repouso ! Talvez umas quatro cadeiras, sempre ocupadas, de resto só me posso sentar para comer ou beber. É um imenso
shopping, mas obrigatório, imposto, aberrante, alucinado, quando este meu desgraçado ser só anseia por levantar voo. Não há já fantasia nem sonho que resistam, é uma via sacra sofrida até à Gate # onde a espera pode ainda ser de horas. Para 2 ou 3 horas de voo, há outras tantas de aeroporto. Já não há rapidez no transporte aéreo. De combóio, pode-se atravessar a estação em minutos até entrar na nossa carruagem. Nos aeroportos, apresentamo-nos voluntariamente para duas ou três horas de massacre.
E há dois tipos de massacre. O 'standard', mínimo, que já descrevi, e só não existe em pequenas jóias como o aeroporto de La Rochelle, bem haja, um lugar ainda humano. E o especial, com brinde, que é o massacre do voo atrasado ou cancelado, ou da porta de embarque A1 que mudou para D23. Noutros tempos, funcionários afáveis e preocupados vinham-nos consolar e acalmar, às vezes com compensações. Agora gritam numa voz plástica, robótica.
E se isto em vez de acontecer uma vez à ida e outra à volta, acontece a meio também numa escala de voo ? Escala onde se julgava ter 2 horas para trasbordo mas o atraso reduziu a folga a 15 minutos com risco de perder o voo de ligação? E depois o próximo voo só com mais 4 horas de espera? Ou se, entrado no avião, os seus lugares estão ocupados e agora tem de se sentar lá para trás, por necessidades da companhia ? E se nas toilettes só há papel no chão - toalhetes e papel limpo já acabaram? E ainda se grama a gritaria das vendas a bordo com fantásticas promoções, as raspadinhas e tudo o mais que impeça de ao menos tirar uma soneca.
Bom, faltam as duas últimas torturas. Uma é a recolha da bagagem. Nalguns aeroportos nem funciona mal: mas em regra teremos de fazer 5 km em corrida pelos corredores à saída do avião para, chegados à sala dos tapetes rolantes com as bagagens, descobrir que o nosso é o nº 9 ( de um total de 9) e ainda falta mais um bom esticanço, e quando lá chegamos a nossa já é a única que anda ali abandonada às voltas... pois bem, ainda falta outra aventura épica: a fila para o táxi !! Sobretudo se já é de noite e chove, esta é uma sobremesa requintada. Porque para 200 pessoas em fila, eles chegam a conta-gotas, de 10 em 10 minutos. Há outros? Há, mas são muito mais caros, ou são de seriedade duvidosa. Quando, perto da uma da madrugada, chegamos ao hotel ou seja lá o que for, só queriamos estar na nossa casinha. Foram dez - dez ! - horas de viagem, só duas e meia em voo, a aventura está morta e enterrada. Vamos dormir pouco e mal, amanhã não será um novo dia como devia ser.
Não, não estou a inventar, tudo isto e pior já me aconteceu. Em Tours, em Stansted, em Hamburgo, em Copenhaga, em Bristol, em Luton... Não, isto já não é para mim, se calhar por ser velho. Tenciono só arriscar viagens de combóio ou quando muito de barco com partida da minha cidade. E mesmo assim, se tiver de usar táxi, não me livro de grande seca, porque é outro transporte que cada vez mais se parece com uma travessia do Letes. Chiça, que tormento.
Ah, a mitologia da Viagem, a magia da Viagem. Foi-se.
A ler :
António Guerreiro na
Estação Meteorológica:
https://www.publico.pt/2018/08/17/culturaipsilon/opiniao/low-cost-e-luta-de-classes-1840998