sábado, 23 de março de 2019

Questões de Viagem, poema de Elizabeth Bishop


Este poema de Bishop é mais longo, dispenso-me por isso do original inglês que é fácil encontrar na net.

Muitas vezes me tenho interrogado, em viagem, ou antes ou depois, em 'casa': mas vale a pena ?, não teria sido melhor ficar e apenas imaginar e sonhar este passeio, esta praça, este concerto, este rio? É verdade que quase sempre acontece algo imprevisto, que nunca poderia imaginar nem no mais louco desvario. Foi assim o Carnaval de Basileia, onde cheguei para ver museus, mas cuja fantástica coreografia me deixou em pasmo pela madrugada. Às vezes coisas magníficas, outras vezes horrorosas. Serão essas anomalias que fazem, afinal, o gozo da viagem ? Parece ser o que sugere Elisabeth Bishop; mas na verdade não partilho totalmente essa ideia. Duas das viagens que mais me deram felicidade foram as últimas, Cotswolds e a Escânia, onde tudo correu na perfeição conforme eu tinha planeado. O contentamento de um laborioso projecto bem sucedido também conta, e ficar em casa não tinha sido melhor. E depois... Não.

Extraordinariamente evocativo, o poema é uma metáfora narrativa que visa mais longe.


Questões de Viagem

Há muitas cascatas aqui; as correntes agitadas
correm demasiado rápidas para o mar,
e a pressão de tantas nuvens nos cimos dos montes
fá-las trasbordar sobre as margens em suave câmara-lenta,
criando cascatas mesmo enquanto olhamos.
- Porque se estes rastos, estes longos, brilhantes, rastos de lágrimas,
não são ainda cascatas,
numa era próxima, e as eras são rápidas aqui,
sê-lo-ão certamente.
Mas se as correntes e as nuvens continuarem a correr, a correr,
as montanhas serão como cascos de navio virados do avesso,
enlodados e encrustados.

Penso no longo regresso a casa.
Devíamos ter ficado em casa pensando em aqui ?
Onde estaríamos hoje?
Terá sentido observarmos estranhos num palco
deste teatro mais que estranho?
Que criancice é esta que enquanto nos resta um bafo de vida
nos corpos, teimamos em nos precipitar
a ver o sol do lado contrário?
O mais miudinho beija-flor verde do mundo?
A olhar para alguma inexplicável antiga pedra lavrada,
inexplicável e impenetrável,
de qualquer ponto de vista,
olhada num relance e sempre, sempre gratificante?
Oh, teremos de sonhar os sonhos
e vivê-los também ?
E teremos ainda espaço
para mais um sol-por dobradinho, ainda quente?

Mas seria com certeza uma pena
não ver as árvores ao longo desta estrada,
realmente exageradas na sua beleza,
não as ter visto gesticular
como nobres pantomineiros, vestidos de rosa.
- Não ter parado para abastecer e ouvido
a triste, duas-notas, lenhosa melodia
de duas tamancas desfasadas
a cliquetar toscamente
no chão engordurado da estação de serviço.
(Noutro país as tamancas seriam testadas.
Cada par teria a mesma tonalidade.)
- Uma pena não ter ouvido
a outra, menos primitiva música da ave castanha
que cantava por cima da bomba de gasolina avariada
numa capela em bambu de barroco Jesuíta:
três torres, cinco cruzes prateadas.
- Sim, uma pena não ter reflectido,
confusa e inconclusivamente,
sobre a conexão que possa existir desde há séculos
entre o mais rude calçado de madeira
e, meticulosa e picuínhas,
a escavada fantasia das gaiolas de madeira.
- Nunca ter estudado História na

débil caligrafia das gaiolas de ave canora.
- E nunca ter escutado a chuva
como quem ouve um discurso político:
duas horas de incansável oratória
e depois um súbito silêncio de ouro
em que o viajante pega num bloco de notas, escreve:

" Será falta de imaginação o que nos leva
a lugares imaginados, em vez de ficar em casa?
Ou será que Pascal não tinha toda a razão

sobre ficarmos sentadinhos em sossego no nosso quarto?

Continente, cidade, país, sociedade:
a escolha nunca é vasta, nunca é livre.
E aqui, ou além ... Não. Devíamos nós ter ficado em casa,
onde quer que casa seja ?
"


                                          Elizabeth Bishop
                                          [tradução minha]
  



"Tout le malheur des hommes vient d'une seule chose, qui est de ne savoir pas demeurer en repos dans une chambre."
                                                                        Pascal, 1670 


4 comentários:

Virginia disse...



Já me arrependi por vezes de ter decidido viajar. Sobretudo nas viagens longas de avião, como a California ou o Brasil ou mesmo Leeds pela Ryanair. O arrependimento é curto como o mal estar. Depressa esqueço e vivo de looking forward to's, passe a expressão. Sair é um must, nem que seja ir a pé até nowhere.

Bonito poema que não conhecia. Estou sempre a aprender neste blogue é uma lufada de ar fresco no caldo da internet. Bom fim de tarde!

Mário R. Gonçalves disse...

"Sair é um must, nem que seja ir a pé até nowhere." - fantástico, Virgínia. Se calhar Bishop concordava.

Eu até há pouco concordaria, mas a falta de saúde, de paciência e de gosto por este mundo deram cabo do meu ímpeto viageiro.

Boas andanças, Virgínia.

Gi disse...

Eu acho que a partir de certa altura - não sei se idade, saúde, número e qualidade das viagens já realizadas - tornamo-nos mais difíceis - criteriosos - na escolha das próximas viagens, e mais difíceis também de deslumbrar com o que encontramos.
Dito isto, ainda espero fazer mais algumas.

Mário R. Gonçalves disse...

Mas não se interroga, Gi, se a viagem 'interior' que poderá fazer em casa será mais gratificante do que a vivência da deslocação ao local idealizado ? Se os muitos incómodos e contrariedades da viagem não arruinam o prazer efémero de uma visita ?

Não me faltam destinos onde gostaria muito de ter ido, duvido é que agora ainda me desse gosto a partida. Obrigado pela vinda aqui.