quarta-feira, 26 de junho de 2019

... e música também para o Verão: preciosidades em CD, vs. Festivais fracos


Athalia é um oratório de Handel composto em 1733, e estreado no Sheldonian Theatre de Oxford para homenagear um dos Colégios que oferecera um 'honoris causa' a Handel. Assistiram 3700 pessoas - uma multidão! - e o aplauso foi retumbante. Baseado no texto de Racine sobre a narrativa bíblica, refere a raínha de Israel Athalaia, que executa todos os herdeiros ao trono por serem judeus descendentes de David. Athalia é coroada e impõe o culto a Baal. Mas houve um que lhe escapou... e acaba por conquistar a coroa. Terrível.

A obra foi propositadamente realizada para atacar a 'idolatria' que grassava em Oxford, ou seja, reduzir a influência católica em favor da Igreja Protestante, que apoiava a causa dos Stuart; o texto de Racine foi convenientemente alterado. Trafulhices da época, a humanidade sempre foi fértil em lutas de poder à volta da religião, que tanto inspira as mais belas obras de arte como comete os crimes mais repugnantes. É assim, a Raça. Não vale mesmo a pena ser racista. O que vale é a música:



Ária de Mathan, sacerdote Baal:

Gentle airs, melodious strains!
Call for raptures out of woe,
Lull the regal mourners' pains,
Sweetly soothe her as you flow


Nos coros, a mestria de Handel:


A gravação de Hogwood é bastante antiga, de 1986, e conta com Emma Kirkby, James Bowman e Rolfe Johnson, dos melhores que já houve em Inglaterra no canto lírico barroco. Que tal este duo com Kirkby e Bowman?



Já Sutherland foi uma escolha duvidosa, que não aprecio. Gloriosa, sim, é a música - e isso é o que me importa. É estranho, mas esta é o único oratório de Handel que nunca tinha ouvido.

Num estilo radicalmente diferente, Blue Hour é um CD do clarinetista Andreas Ottensamer com a pianista Yuja Wang, que reinterpretam em duo obras escritas originalmente noutra conformação, como o famoso e belo Intermezzo para piano de Brahms:


Andreas Ottensamer é clarinetista principal da Filarmónica de Berlim desde os 21 anos. Yuja Wang é uma pianista chinesa, ex-prodígio, que se dedica mais ao reportório russo e até me admira com a sua inabitual contenção neste disco. Por exemplo, nas Canções Sem Palavras de Mendelssohn, como esta:



Para ouvir à noite, ou para oferecer a um amigo muito amigo.

E voltamos ao  barroco em Inglaterra, agora com Corelli em Londres, trinta anos antes da Athalia. Por volta de 1700, surgiu no Reino Unido e em Dublin uma febre de admiração e culto do italiano Corelli, venerado como o maior dos compositores da época, 'Toda a gente' ouvia e tocava Corelli.


Nesta gravação "Mr. Corelli in London", com o flautista Maurice Steger, o English Concert dirigido por Laurence Cummings toca concertos para flauta de Corelli. Uma música apropriada para o Verão:



Finalmete, e nunca é de mais, insisto em Anne Akiko Meyers e o CD MIrror in Mirror, uma jóia cheia de obras primas, que continua a figurar aqui na margem direita. Já publiquei anteriormente o fenomenal Magnum Mysterium de Lauridsen.

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Em contrapartida, os festivais de Verão deste ano não prestam para nada. Falo mais dos nortenhos, claro: no FIME de Espinho e no FIMPV da Póvoa não há um único concerto que mereça a deslocação, ora porque o programa não presta, ora porque os intérpretes são de terceira categoria. Continuamos o lixo da Europa na música clássica, salvem-se dois ou três concertos da Gulbenkian e da Casa da Música. Ah, Glyndebourne, Pesaro, Lucerne, Aix, Verbier, Savonlinna...

2 comentários:

Fanático_Um disse...

Obrigado por mais este "post" Mário. Não conhecia este oratório de Haendel (!), fiquei muito agradado com o que ouvi e, logo que me seja possível, tentarei ouvir toda a peça com a serenidade e atenção que seguramente merece.

Apesar de ter escrito em letras pequeninas, concordo consigo quando escreve que continuamos a ser o lixo da Europa na música clássica. Como sabe, a minha grande paixão é a ópera e então nesta, o panorama é desolador. O único teatro de ópera do País (Teatro Nacional de São Carlos) tem tido umas temporadas miseráveis, com poucas óperas, poucas récitas e,dentro da escassez, várias obras totalmente desconhecidas do público não especialista. Depois há as óperas apresentadas em versão concerto, os cancelamentos e, actualmente, a greve que levou ao cancelamento de todas as récitas de La Bohème este mês, uma das menos de meia dúzia de óperas da temporada. Não conheço nenhum país europeu em que a ópera seja tão mal tratada e tão desconsiderada como em Portugal. Uma tristeza!

Mário R. Gonçalves disse...

Caro Fanático_Um, tenho continuado a acompanhar o Fanáticos da Ópera e li o que lá foi publicado sobre o S. Carlos. É revoltante.
Muitas vezes nem sei o que comentar, tanto me parece que já tudo foi dito. Mas cheguei a tentar colocar dois comentários, só que algo correu mal e não foram publicados. Culpa minha, certamente, se calhar não me identiquei de fprma correcta, e perderam-se.
Compreendo bem porque sai de Lisboa à procura da boa Ópera, e apesar da amaldiçoada tentativa revisionista moderna das encenações, muita coisa ainda vai sendo excelente, há vozes magníficas. Infelizmente, já não me sinto com genica para andar de viagem como há anos, mas tenciono ir a Valência para o ano, o programa do Reina Sofia tem coisas bem interessantes, já viu? E já reservei a récita da Didonato na Gulbenkian, claro.
A Athalia foi para mim uma surpresa, é uma obra que soa refrescantemente nova.

Enfim, pelo menos estar na UE teve/tem a vantagem de nos aproximar de centro de cultura que nos compensam do miserabilismo que cá reina; e que não é questão de falta de dinheiro, mas de falta de gosto. Para quem tem mau gosto abundam concertos, exposições e festivais. Um abraço.