terça-feira, 10 de dezembro de 2019

King's Lynn, o entreposto da Liga Hanseática em Inglaterra.


Costumo aqui descrever sítios onde estive e onde gostei de estar, ou sítios onde nunca estive mas gostava de ter visitado. Este hoje é diferente: um sítio onde estive mas não gostei, por razões imponderáveis, e reconheço agora, vendo o que não vi, o quanto errei.

Foi uma visita estragada, durante umas férias baseadas em Cambridge. Já depois de ter a sorte de visitar Ely, a mais bela catedral onde já entrei, chegou o dia de ir para norte até King's Lynn, que eu já sabia ter sido porto hanseático; e então desatou a chover a cântaros. Chegámos lá quase sem visibilidade, era impossível sair à rua sem ficar a pingar. Lembro-me só de ter dado umas voltas de carro no centro, mal disposto e enervado, e ter decidido que era tudo feio, escuro e abandonado, não valia a pena; mas nos anos seguintes acabei por saber que fiz muito mal, que devia ter insistido uma segunda vez. King's Lynn, fundada em 1095, é uma preciosidade da era Hanseática, o único balcão (kontor) da Liga de que ainda restam edifícios significativos em Inglaterra.

É essa não-visita que quis contrariar com esta reportagem, colhida em viagem nas ondas www.


Na foz do rio Ouse, King’s Lynn estava bem situada: no extremo ocidente da zona de tráfego marítimo da Hansa. Do século XIV até ao séc. XVI, por razões estratégicas, King's Lynn estabeleceu uma rota de previlégio com Dantzig, embora também negociasse com Bergen e Lübeck. Foram os negociantes de Dantzig que instalaram o kontor da liga junto ao porto.

South Gate – a porta medieval (séc. XIV) ainda marca a entrada na cidade.

King's Lynn, Norfolk - Reino Unido

Coordenadas; 52° 45' N, 0° 24' E
População: 43 000

O velho porto com a Custom House. Lynn significa "lagoa". Algo como 'Lagoa d'El Rei'.

A Custom House (Alfândega) é o edifício mais marcante de King's Lynn; está situada junto ao antigo cais no rio Ouse, o Purfleet Quay, que desde a Idade Média era o principal ancoradouro. A casa da Alfândega funciona agora como Museu Marítimo e posto de Turismo.

Purfleet Quay, o cais medieval onde no século XIV se estabeleceu o Kontor da Hansa.

Estátua de George Vancouver, navegador e explorador, e no lado oposto Staithe Square, a praça cívica. Por trás corre Nelson Street.



À beira das águas e junto à Praça do Mercado, a casa da Alfândega foi construída em 1685, após o fim da Liga, para servir a agremiação dos comerciantes locais. Passou a ser o lugar das transacções, uma 'bolsa' de milho, vinho (de Portugal), sal, peixe, madeira, cera, carvão e lã.


Posto da Liga Hanseática

Durante o Festival da Hansa em 2017, uma embarcação restaurada saúda a cidade do Ouse.

King’s Lynn juntou-se à Liga Hanseática em 1271; no século XIV era o maior porto oriental e o terceiro do Reino. Os mercadores enriquecidos investiram em boas casas, e até final do século XVI a cidade foi crescendo com a importação de carvão e vinho e a exportação de milho.


Com o fim da Hansa e a descoberta da América a benefeciar os portos da costa Oeste, a cidade voltou-se para outros mercados, sobretudo Portugal e França, mas foi perdendo protagonisno até ao século XIX. Nem sequer beneficiou de actividade fabril: a linha férrea construída em 1840 passava ao lado, agravando a perda de importância estratégica do porto. Só no fim do século XIX, na era Victoriana, recuperaria em parte com o negócio do carvão, madeira e cereais, e com a construção de novas docas (1869); passaria de uma cidade de comerciantes a uma cidade industrial.

À entrada de Nelson Street, uma casa do séc. XV conhecida como 'Valiant Sailor'.

Nelson Street, rua histórica.

Hanse House
Pouco mais à frente, em Nelson Street, surge um edifício único no país e raro na Europa: a Casa da Hansa, ou armazém Hanseático.


Construída em 1475, ficou pelo tratado de Utrecht a pertencer aos comerciantes germânicos e prussianos de Dantzig que geriam a Liga; à volta de 1500 eles eram uns 40, o que mostra a importância do posto inglês. Só em meados do século XVIII a posse seria transferida para os munícipes de King's Lynn.


Ao longo dos séculos seguintes foram feitas alterações e ampliações. Perderam-se as empenas medievais. O edifício serviu sucessivamente como destilaria, celeiro, escola e residência na era Victoriana. E agora, café, sala de chá e loja de produtos artesanais. O habitual, nos tempos que correm.


Agora serve para casamentos, festas e palestras.


Ainda em Nelson Street, mas já no séc. XVIII, a casa da abastada família Browne exibia assim o status de cinco gerações no negócio:


Ye Old Lattice Inn, Chapel Street


A Lattice House é uma casa de enxamel do século XV, mostrando a prosperidade de um comerciante que nela instalou três lojas; desde 1714 foi convertida em estalagem e pub.


Renovada, é agora um dos pubs mais bonitos da cidade.



Greenland Fishery, Bridge street

Fica mais para sul, e foi construída muito mais tarde (1605-1608) já perto do declinío de King's Lynn pelo comerciante John Atkin. Outro belo edifício classificado que foi objecto recente de restauro para novas funcionalidades.

O nome deve-se a ter sido a sede de uma companhia de pesca da baleia que operava na Gronelândia. Um comércio que sucedeu à Liga: a frota de baleeiros partia em Março e voltava em Agosto, entre 1760 e 1830.



No interior resistiram alguns frescos do séc. XVII simulando um painel de mosaico.


Voltando para a área central, Queen Street:

Queen Street é uma das ruas mais antigas, com várias casas georgianas classificadas; abre para a 'Saturday Market Place', Praça do Mercado de Sábado.

The Old Guildhall
Saturday Market Place

Nesta praceta funcionava o mercado medieval, desde ca. 1100.


À saída de Queen Street, e frente à Igreja, fica o mais surpreendente edifício de King's Lynn: a antiga Câmara (Town Hall), ocupando a Casa da Guilda gótica, de 1421, com uma vistosa fachada de tijolo em padrão tabuleiro-de-xadrez, e um pórtico adicionado em 1624.

À direita, a Trinity Guild e a sua janela gótica, a construcção original de 1421; a meio, o pórtico adicionado em 1624, e à esquerda a Assembly Room de 1767.

A Guildhall, num estilo arquitectónico vindo dos Países Baixos, começou por ser o lugar de encontro da Guilda dos Mercadores, mais conhecida como Trinity Guild. Mas foi sendo ampliada com edificações anexas, que formam um complexo arquitectónico único, à volta da praceta onde funcionava o mercado dos Sábados. A Assembly Room foi completada em 1768, é já um edifício da era georgiana.
http://www.kingslynntownhall.com/townhall/history/
Uma parte do complexo é utilizada como sala de concertos, outra como salão de festas.

Assembly Room e Card Room

A vista de College Lane. mesmo em frente.

O pórtico adicionado em 1624, no reinado de James I.

Detalhe da decoração em xadrez da fachada.

A taça ornamentada do 'infame' Rei João (King John's Cup, c.1325), uma preciosidade de prata, ouro e jóias que faz parte do 'tesouro' da Guildhall.

Sala victoriana (Assembly Hall).


A Igreja de Sta Margarida data de 1101, mas da edificação original normanda quase nada resta. Tal como nada resta da reedificação no séc. XIII, a não ser a arcada da capela-mor. Desde o século XV, o a riqueza dos mercadores da cidade financiou vários restauros e 'embelezamentos'.

Impressiona a sua dimensão numa cidade modesta, mais um sinal da riqueza e importância que teve noutras épocas.


Relógio de lua e marés, na torre da direita; as marés foram sempre uma preocupação grande dos habitantes, devido à sua grande amplitude nesta costa.

Entrando na igreja, logo são visíveis as marcas das grandes inundações - o nível da maré viva de 2013 ultrapassa a de 1978, mas entretanto tinham sido construídas  defesas mais eficazes.

A nave foi completamente reconstruída depois de uma derrocada em 1741.


O interior não é especialmente notável, a não ser talvez pelas misericórdias esculpidas nos assentos de madeira da capela-mor.

Cadeiras da capela-mor com talha do século XIV.



No século XIX a igreja foi de novo amplamente restaurada e decorada ao gosto Victoriano, com vitrais como este:

St. Margaret's Place é uma praceta onde também vale a pena parar; em frente à igreja há uma bela casa georgiana:

The Corn Exchange (Mercado do Milho)

Tuesday Market Place

De 1854, é o melhor exemplar de arquitectura Victoriana na cidade, encimado por Demeter (Ceres), a deusa das colheitas. O milho foi a maior exportação de King's Lynn entre os séculos XVI e XVIII.

Foi convertida num grande sala de concertos, a melhor da cidade.


A King's Lynn comercial

High Street, a rua comercial, é onde costuma haver mais gente e animação.

Além de ser pedonal, ainda mantém casas que vão do Tudor ao Eduardiano.

Café & Bakery Nurbury's, Tower Street.

Antes de acabar, convém referir que o porto continua muito activo, tanto as docas de carga como as docas de pesca.
Fisher Fleet Docks.

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Ainda hoje me arrependo de ter falhado vergonhosamente este tesouro inglês da Hansa. Essa Liga de Cidades que foi talvez o primeiro esboço de CEE/União Europeia, uma união comercial e fiscal à volta do Mar do Norte que se estendeu a sul, em França até La Rochelle; a norte, até Bergen e as ilhas Shetland (Symbister); a leste, para lá dos países bálticos. Um todo coerente até na impressionante unidade arquitectónica: os postos da Liga Hanseática eram inconfundíveis.

O passeio marginal do Ouse para sul.

Vista do Bank House Hotel para a Staithe Square.


Estivesse King's Lynn numa rota turística, e seria invadida diariamente por camionetas e caravanas, perdido o sossego onde ainda se respiram tempos passados. Espero que continue livre disso.

Alas, fica para a próxima vida. Quem puder, num dia soalheiro, dê lá um salto - 2 horas de combóio desde Londres, só 1 hora de Cambridge.

Mais:
http://www.docbrown.info/docspics/eastern/eapage03.htm

3 comentários:

Fanático_Um disse...

Cada um destes seus "posts" deixa-nos vontade de ir lá desfrutar dos locais. Não conheço King´s Lynn, confesso que nunca tinha sequer lido nada sobre o local mas, como vou regularmente a Londres (embora sempre por pouco tempo e com do dias - e noites! - preenchidas, espero ainda nesta vida conseguir ir visitar este local. Terei que o programar para depois de 2020, dado que as deslocações no próximo ano já estão "fechadas". Obrigado Mário.

Mário R. Gonçalves disse...

Obrigado, Fanático_Um. Já agora, mais uma curiosidade: no século XVIII, o comércio marítimo de King´s Lynn com Lisboa era o mais volumoso. Por exemplo, em 1737 houve 16 grandes navios de carga a fazer essa rota, cada um transportando cerca de 400 toneladas de grão de milho à ida para Lisboa, vinho no regresso. Os ingleses achavam o vinho português ácido, mas era mais barato. O milho era depois reenviado por mar para as colónias (Brasil e África), pois o "Império" português estava no seu auge.

Fanático_Um disse...

Obrigado Mário por mais esta informação. Eu sou um assíduo aluno seu e nestes "posts" de qualidade excepcional. Considero que estou a fazer um curso de História Europeia numa abordagem que nunca tinha visto e que tem sido extremamente cativante, instrutiva e profusamente ilustrada, como nunca pensei encontrar num blogue que, afinal, é um livro! Continue e bem haja!