quarta-feira, 4 de novembro de 2020

La Chasse-Galerie, A Canoa Voadora, um conto tradicional do Québec


Um post contra a corrente, a ver se quebra enguiços.

Os Corredores dos Bosques (Coureurs des Bois) eram negociantes de peles franco-canadianos que desde o século XVII percorriam longas distâncias pelas florestas do Québec à procura de aldeamentos nativos (Iroquois) para negociarem trocas directas - ofereciam utensílios europeus para obter em troca peles de castor. Usavam canoas para navegar os rios, e muitos aprendiam e adaptavam-se ao modo de vida dos indígenas, sendo recebidos nas tribos como iguais; alguns deles casavam com nativas - que se revelavam preciosas tradutoras - e além disso podiam ter uma esposa em cada tribo, para grande desgosto dos missionários !

Casamento de 'Voyageur' canadiano, por Alfred Jacob Miller

A vida libertina e aventurosa dos Coureurs tornou-se lendária, de certo modo mitificada e romantizada como símbolo da Nova França colonial. As peles de castor eram muito valiosas na Europa para a confecção de chapéus, e França obteve a concessão de monopólio. Com isso estimulou a imigração para o Quebec, que passou por um pico de intensidade nesse século; os Coureurs des Bois faziam viagens de 18 meses, milhares de quilómetros ida e volta, e para isso tornaram-se exímios canoístas; na canoa tinham de armazenar mantimentos, agasalhos, munições, armas e facas... Seguiam o curso dos rios Ottawa, St. Lawrence e afluentes, onde tinham de manobrar através de perigosos rápidos. 

As tribos Iroquesas (famílias Cherokee, Mohawk) nem sempre eram amigas, e preferiam os Ingleses como aliados; havia frequentes confrontos, mas relações amistosas entre Iroqueses e Coureurs des Bois eram uma garantia. As autoridades tinham com eles uma relação ambígua - os Coureurs não eram muito cumpridores da lei, mas eram imprescindíveis para a economia local e como intérpretes.

François Mercier, famoso 'Coureur des Bois' - o 'rei do comércio de peles do Norte'.

Alguns destes Coureurs foram também, como François Mercier,  exploradores do Norte canadiano, descobrindo novas terras à volta da Baía de Hudson e já dentro do Ártico.

-----------------------------------------

Neste contexto surgiu no Québec e espalhou-se nos séculos seguintes uma lenda em torno da Canoa Voadora, protagonista de uma 'Caçada Fantástica' - a Chasse-Galerie. Este nome provém de uma lenda francesa (zona de Nantes) em que o nobre Sire Gallery, por ter ido à caça durante a missa de domingo, foi condenado para a eternidade a caçar monstros no céu nocturno. Aos imigrantes franceses nas florestas do Canadá, a Canoa Voadora inspirou uma história diferente:

Depois de uma farta noite de Ano Novo, bem bebida de rum, um grupo de Coureurs des Bois de uma aldeia de cabanas prepara-se para mais uma semana de trabalho quando um deles, Baptiste, os desafia a ir ver as suas blondes, a mais de 100 léguas*, e voltar ainda a tempo da nova temporada. A distância não permite uma viagem normal de ida e volta; por isso ele requer uma viagem de Canoa Voadora, um pacto com o diabo que os levanta em voo acima da aldeia e da floresta, numa velocidade vertiginosa; em troca, têm de prometer e cumprir que não dirão o nome de Deus nem tocarão nenhuma cruz no alto das torres das igrejas. Se falharem, entregam a alma ao diabo.

Completada a equipagem, começam por combinar não tocar em nenhuma garrafa de rum, não beber nem uma gota, pois têm de manter a cabeça fria. Ditas as palavras mágicas, a canoa levanta-se do chão, e começam todos a remar. 

" Aux premiers coups d'aviron le cannot s'élança dans l'air comme une flèche, et c'est le cas de dire, le diable nous emportait. Ça nous en coupait le respire et le poil en frisait sur nos bonnets de carcajou."

Lá em baixo vêem o rio congelado, aldeias, campanários de igrejas a brilhar, as luzes de Montréal; a canoa pousa finalmente num banco de neve junto de uma casa iluminada, chez Battisette, onde as festas decorrem com pleno fulgor. Os canoístas são recebidos de braços abertos, e em breve estão a dançar, cada um com a sua blonde. Joe, o narrador, procura a sua Liza Guimbette:

"Je m'approchai d'elle pour la saluer et pour lui demander l'avantage de la prochaine ... elle accepta avec un sourire qui me fit oublier que j'avais risqué le salut de mon âme pour avoir le plaisir de trémousser et de battre les ailes de pigeon en sa compagnie. Pendant deux heures de temps, une danse n'attendait pas l'autre..."

Faz-se tarde e saem pela calada, têm de voltar para o trabalho do dia seguinte. Voando pela noite escura, agora sem luar, torna-se claro que o piloto Baptiste esteve a beber, pois a canoa segue às curvas, sem rumo firme, e desvia-se da rota. Em Montréal escapam por pouco a uma torre de campanário, e a canoa acaba por encalhar contra o flanco de um monte, num banco de  neve mole. Ninguém se magoa, mas o piloto ébrio começa a praguejar e a invocar o nome de Deus em vão; os restantes, receando que o diabo lhes leve a alma, amarram e amordaçam o homem e escolhem um novo piloto. Mas o embriagado Baptiste consegue soltar-se e levanta-se vociferando blasfémias, deixando os outros a tremer com os cabelos em pé; como Baptiste começa a brandir o remo em voltas ameaçadoras, a canoa descontrola-se e acaba por ir de encontro a um alto pinheiro. A tripulação é cuspida fora e cai inconsciente na neve.

(...) " le canot heurta la tête d'un gros pin et que nous voilá tous précipités en bas, dégringolant de branche en branche comme des perdrix que l'on tue dans les épinettes."

São encontrados por lenhadores no dia seguinte, adormecidos numa lomba de neve sob o pinheiro.  Tirando arranhões e costas doridas, estão todos bem e muito calados, negam suspeitas de bebedeira, ninguém quer contar a história de como quase venderam a alma ao diabo. Por pouco tinham escapado.

Moral (traduzida):

Meus amigos, não é assim tão divertido ir visitar a nossa lourinha numa canoa de casca de bétula, em pleno Inverno, voando à desfilada numa 'Chasse-Galerie'. Mais vale apanhar todos os rápidos do rio Ottawa e do St. Lawrence numa jangada, que viajar na companhia do diabo".


La chasse-galeries, Honoré Beaugrand, 1892


Sem comentários: