quarta-feira, 24 de março de 2021

Karl Kahl, pintor impressionista russo vítima do 'terror político'


Nunca mais esquecer, casos como o deste pintor russo balta de Riga.

Karl Nikolaevich Kahl (1873-1938), perseguido pelo regime soviético, foi deportado para Tomsk onde acabou fuzilado por 'traição'. Só em 1996 foi reabilitado, triste adjectivo, mas nem por isso reconhecido como herói e homem de talento artístico.

Kahl nasceu em 1873 em Riga, no Báltico alemão. Em 1898 graduou-se na Academia de Artes de Dusseldorf, e chegou a ser premiado na exposição de Arte Russa durante os Olímpicos de 1904 em St. Louis. Foi viver em Vitebsk, Bielorússia, e desde 1912 optou por se fixar e trabalhar em Vladivostok, contribuindo para as Artes na região do Primorsky com paisagens e naturezas mortas no estilo impressionista. Na altura a cidade vivia um período cultural cosmopolita que atraiu vários criadores.

Em Abril de 1935 foi preso em Vladivostok, condenado a 5 anos de prisão e perda de direitos, que cumpriu na colónia penal de trabalho nº 2 de Tomsk; lá continuou o trabalho artístico, mas de novo acusado, a 3 de Dezembro de 1937, de espionagem para os alemães, foi condenado e fuzilado, com dezenas de outros, a 3 de Janeiro de 1938. 

A sua arte não interessava ao regime, que promovia o "realismo socialista". Por isso a reabilitação só viria em Fevereiro de 1965 pelo Supremo Tribunal da URSS; Karl tinha sido uma " vítima do terror político".  

Da obra de Karl Kahl pouco nos chegou, apenas alguns quadros dispersos por coleccionadores privados (em Saint Louis, no Japão), galerias e alguns museus, como os de Khabarovsk ou Vladivostok. 

Primavera, uma das obras da época de St Louis.

Macieiras em flor

Karl Kahl pintou a luz do Primorsky, uma região de luz mediterrânica em clima frio que lhe inspira uma mistura de tonalidades quentes e frias.

Outono

No rio

Em Abril de 2016 teve lugar a primeira exposição dedicada a Karl Kahl, que percorreu as cidades do Extremo Oriente russo.

Paisagem de Outono

Março

Retrato da senhora Chemnitz, o único retrato pintado por Kahl.

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Mais: aqui  e  aqui (em russo)


sábado, 20 de março de 2021

Passeio de desconfinamento com banquinhos libertados


Bem, a Primavera ajuda, há prados floridos e cantam os passarinhos, portanto o calor da Natureza boa talvez vença a negra Natureza má, com um empurrãozinho das seringas benéficas.

Saí rua abaixo até ao Parque da Cidade, julgando encontrá-lo vazio, a uma quinta feira. Que engano, Grupos e mais grupos, grupos de ciclistas que encostam bicicletas às árvores, mães com carrinhos de bébé, grupos de brasileiros ruidosos, grupos de tugas a falar ao telemóvel língua de pocilga, grupos de passeadores de cães múltiplos. Casos mais raros, uma 'artista' a treinar caminhada sobre fio suspenso, casais na relva com toalha e fruta.

Todo o mundo saiu. Aqui nas fotos evito gente, claro. O que me deu mais gozo foi sentar nos bancos livremente!




Também o tapete de trevo estava contente.



Livre !

Belo !


Raras vezes o parque me pareceu tão bonito e apaziguador. Depois da subida de regresso, chegado a casa, preciso de um tempinho de sofá, sem saber de como vai o mundo. Bom fim de semana.




quarta-feira, 17 de março de 2021

George Steiner sobre a herança Grega


Independentemente de tudo o que não concordo no que George Steiner escreve, ele é com Fukuyama o pensador mais marcante da passagem do século. Não concordo com a admiração e referência que Steiner atribui à filosofia germânica (Nietzsche, Hölderlin, Hegel, Heidegger, Schopenhauer, Kierkegaard) que antes me parece a origem de toda a grande tragédia alemã e europeia do século XX; e não concordo com o gosto musical de Steiner, admirador de Wagner nec plus ultra e dos seguidores do horrendo Adorno - Boulez, Messiaen, Ligeti, Nono, Berio, toda a escória musical do atonalismo e serialismo, isso sim apenas ruído.

Mas quando Steiner fala da herança europeia e da superioridade da cultura clássica tendo a concordar, mesmo que ele exagere no desprezo pela cultura anglo-americana do pós-guerra, de que nitidamente não percebe nada. Nestas entrevistas que concedeu a Ramin Jahanbegloo diz a certo ponto:

' Tenho a convicção íntima de que certas ordens de especulação intelectual só podem encontrar-se num mundo limitado no qual os escravos asseguram aos abastados a subsistência necessária bem como o ócio, que lhes permite discutirem as secções cónicas ou a álgebra dos números irracionais na Academia. Com efeito, o privilégio insensato que a Grécia conheceu consistia nesse luxo de um pensamento político baseado na escravatura e na redução da mulher a um estatuto de inferioridade. Tudo o que é nosso foi pensado durante esse breve período da história humana; somos filhos desse mundo. Depois dele, o nosso conhecimento só muito pouco enriqueceu. A nossa ciência, as nossas matemáticas são um banal prolongamento das dos Gregos. Schelling dizia que, quando pensamos, somos todos gregos. Talvez sejamos '"todos" * hebreus quando rezamos ou sofremos, mas o pensamento, concebido de modo especulativo, formal e plástico, vem-nos dos gregos. Ser professor é ser grego. Receber alguém numa universidade ou numa academia é ser ateniense. '

Isto eu subescrevo, atento e agradecido; senti-me grego e ateniense algumas vezes. O mais nobre pensamento da humanidade foi obtido em condições do que hoje seria  repugnante injustiça social. Argumento a sustentar portanto que a injustiça social nada tem a ver com o nível de cultura e civilização como pretende o socialismo clássico.

Quando pensamos somos todos gregos. 


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*aspas minhas; não sou nada hebreu.

sexta-feira, 12 de março de 2021

Grise Fiord, capital de Ellesmere no Alto Ártico Canadiano.


Destino improvável, esta seria uma evasão grandiosa, homérica.

Ellesmere, ilha de bonito nome, é a décima maior do mundo e fica acima do círculo polar na região do Nunavut, a oeste da Gronelândia. Quase toda classificada como parque natural, desabitada à excepção de duas estações polares de investigação*, tem uma única povoação no extremo sul, Grise Fiord, habitada desde os anos 50 por uma população Inuit.



Grise Fiord
(Aujuittuq, ou ausuiktuq, "onde o gelo nunca funde")

População: ~160
Coordenadas: 76º 25´N , 82° 53′ W (1150 km a norte do Círculo Polar)


Grise Fiord está numa enseada do golfo Jones Sound, na costa sul da Ilha de Ellesmere**. É a comunidade mais a norte do Canadá. Tem cerca de 40 moradias e 20 edifícios comerciais ou administrativos. O nome colonial foi atribuído à volta de 1900 pelo explorador norueguês Otto Sverdrup.
As casas têm de ser estruturas leves sobre estacas.




Foi fundada em 1953, quando o Governo do Canadá forçou o realojamento de famílias Inuit do Quebec e da ilha de Baffin, para reforçar a soberania do país na Alto Ártico. Foi um início trágico e desumano, que mais tarde se tentou atenuar com o reconhecimento e a onstalação de serviços à comunidade - Escola, Correios, post de Saúde, pista de aterragem, e em 1966 a loja-cooperativa Inuit que exerce uma espécie de governo étnico, além de estimular as artes e desportos. 
Larry Audlaluk escreveu um livro de memórias onde narra o sofrimento dos pais para se adaptarem a uma terra árida, sem pastagens nem recursos.

A Co-op vende sobretudo congelados, doçaria embalada e conservas. Frescos, poucos e caros.


Mesmo a cobrar uns brinquedos na caixa, a tradição inuit marca uma diferença.

A Escola Umimmak é sempre o local mais alegre e animado.


É o centro de actividades diárias para a comunidade.


Danças tradicionais, cinema, aulas de costura e arte, educação de adultos e dias especiais do calendário, tudo acontece na escola.

Nos dias de luz , é ao ar livre que se brinca.


A Igreja de S. Pedro foi construída nos anos 60. Sofreu recentemente um incêndio.


Num local de tal forma longínquo e isolado, as formas básicas de sustento são vitais: pesca e caça de subsistência. Felizmente os recursos marinhos abundam; já em terra coelhos, raposas e caribous têm diminuído drasticamente, só os bois almiscarados (umimmak) estão em expansão. Com as alterações climáticas talvez as coisas até melhorem por aqui.

As peles de urso podem ser obtidas se o urso for abatido em defesa sob ameaça.

Foto de Laisa Audlaluk, Grise Fiord.

Na caça às focas, nem os mais velhos resistem às tecnologias; abandonaram os trenós pelos snowmobiles (motas de neve), e agora aderiram aos SUVS, que têm aquecimento e música.


Para adquirir os escassos produtos importados do Sul, a ajuda maior são as receitas do turismo, cruzeiros sobretudo, e a venda de artesanato local. A vida é dura, triste e monótona, mas ralaxada e saudável. Os homens dedicam-se mais à pesca e caça, as mulheres à confecção de roupas quentes - parkas, kamiks (botas).

Looty Pijamini (n. 1953) é um artista escultor Inuit de Grise Fiord.

Sedna, a 'deusa' do mar.

Duas mães

Em homenagem aos primeiros Inuit que fundaram a colónia de Grise Fiord, Looty esculpiu em 2010 este conjunto mãe e filho, de olhar expectante, a mãe mais assustada, a criança parecendo desafiar o futuro.



Roupas amautiit (foca, caribou). Amautiit = parka inuit concebida para transportar uma criança às costas. 

Como estamos em altas latitudes árticas, há aqui duas estações no ano: a estação da luz dura de Maio a Agosto, é quando o sol nunca se põe; a estação escura vai de Outubro a meados de Fevereiro, quando o sol nunca nasce - a longa noite. A temperatora vai de 0º a -40ºC nos meses frios, em Janeiro atingiu uma vez -62.2º C.


A Ilha de Ellesmere constitui uma Reserva Natural, pela geologia e pela fauna. 


Apesar da escassez de pastos e vegetação, existe uma fauna inesperadamente abundante. A mais incómoda são os rebanhos de bois almiscarados; mas há os belos veados Caribou Peary:
A vantagem do caribou é a velocidade com que corre.

E lebres, brancas como a neve:

Assim como as inevitáveis raposas:


Nas aves, a espectacular coruja das neves:

e os Ptarmigans, espécie de perdiz do ártico muito apreciada:

Ursos polares vão rareando, e na verdade não fazem muita falta. Criou-se um mito, mas é um bicho inútil (à parte as peles que os Inuit aproveitam) e pouco recomendável.

Este viu certamente um salmão do ártico sob o gelo.

Uma história que espantou os biólogos foi a da raposa azul de Spitsbergen (nas Svalbard, ilhas árticas da Noruega) que após ter sido marcada percorreu nada menos que 3 500 km até ser detectada em Ellesmere, tendo atravessado a calote polar até à Gronelândia e daí a baía de Baffin para a ilha canadiana:


A jornada durou 76 dias entre Março e o fim de Junho, quase sem parar. Estranha persistência.

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* A maior é Alert, das forças armadas canadianas, com uma equipa permanente de cerca de 60 pessoas.
** Ellesmere é uma aldeia e lagoa a sul de Chester, UK