quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A cultura de amanhã: tudo à mão, nada na cabeça


Não resisto a citar, em adaptação minha, um magnífico textozinho de PHILIPPE BOUVARD no Figaro:

"Todo o avanço tecnológico colectivo é acompanhado de um recuo cultural individual"

Os recursos informáticos multiplicam-se de tal maneira que mesmo antes da chegada da inteligência artificial já podemos imaginar o erudito do séc XXI: formado em letras (do teclado), terá à disposição todos os dicionários impressos desde Gutemberg , mas ele próprio não escreverá nada a não ser mensagens em texto . Sem conhecer a tabuada, levará décimas de segundo para extrair a raiz quadrada de um número com 17 algarismos. Sem nunca ter ouvido falar de Napoleão, citará facilmente os títulos de 50 000 obras que lhe foram dedicadas.

Tudo em virtude do “postulado de Google” segundo o qual todo o avanço tecnológico colectivo é acompanhado de um recuo cultural individual. O nosso erudito não será detentor de nenhum saber mas terá todas as disciplinas ao seu alcance. Poderá descobrir as torpezas do género humano pela tele-realidade [reality shows], o seu local de emprego será em casa graças ao tele-trabalho e, sempre sem sair, poderá perder o dinheiro que acabou de ganhar nos jogos online, poderá ter ligações virtuais e muitas amizades com milhares de amigos com quem nunca se encontrará, e só se deslocará de carro em férias num modelo ecológico à base de água de lavagem dos legumes biológicos, e até poderá continuar a devanear no banco de trás devido à condução programada do destino em carris electromagnéticos.

Consultará pela net o seu guru de referência em Nova Deli, será operado à distância por um cirurgião de Nova Iorque, dialogará por visiofone com o merceeiro da esquina. Terminará os seus estudos (sudoku e sânscrito) aos 35 anos, indo para a reforma aos 50, depois de avisado pelo GPS medico-sanitário de uma desregulação dos órgãos onde tinha implantado minicaptores.

Ocupará o meio século que lhe resta a ir verificar aos 4 cantos do planeta que afinal os panoramas até são iguais aos que começara a descobrir desde a infância no écrã , no Flickr e no Picasa. Ora!

Philippe Bouvard
Figaro, 02/10/2009

2 comentários:

Gi disse...

Há muitos anos alguém me disse que a pessoa culta não é a que sabe tudo mas a que sabe onde procurar o que não sabe.

Noutro tom: a última frase do seu post já é um bocadinho verdade... Valham-nos os cheiros e as sensações tácteis que ainda não são reprodutíveis tecnologicamente.

Mário R. Gonçalves disse...

O escrito de Bouvard é um bocado catastrofista, mas salva-o a ironia.

Mas concordo em parte com ele: acho que para se procurar o que não se sabe, é preciso já saber muito...e é isso que ele pretende denunciar: um "saber-fazer" inconsistente, a que não corresponde nenhum conhecimento estruturado.

Por mim, sorrio: qualquer sítio onde vá é sempre MUITO MELHOR do que o pequeno écrã mostrava...

Bom fim de semana.