quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A mais bela de todas as óperas

Não, não vou pôr aqui à votação a melhor ópera de sempre - deixo isso a cargo do Fernando Vasconcelos.

Isto é só um panfleto apaixonado. Há 4 óperas que se puder nunca perco, que me enchem de beata felicidade melómana e teatral, que ouço e canto frequentemente em casa ( e no banho...) , que ponho nos píncaros das melhores obras da humanidade, e são: a Flauta Mágica, o Fidelio, os Mestres Cantores e o Guilherme Tell. Sem desprimor para mais uma dúzia de outras excelentes óperas.

Todas estas quatro são "sérias" , com um libretto suficientemente rico e complexo, personagens fascinantes, situações comoventes e música absolutamente divinal.

Mesmo assim, das três, uma sobressai para mim como a obra prima suprema: o Guilherme Tell (1828, tinha Rossini 36 anos). Poucas vezes interpretado nos nossos dias, talvez devido a particulares dificuldades de canto e encenação, e de encontrar o ritmo certo para não tornar pesadas as 3 a 5h que demora (conforme os cortes...), o Guilherme Tell é de uma enormidade genial . A narrativa (libretto baseado no poema dramático 'Wilhelm Tell' de Schiller) prende, as árias desencadeiam fortes sentimentos, da lágrima à expectativa receosa, à indignação e ao contentamento, o enredo progride para um belo clímax final. A música flui de forma avassaladora como em nenhuma outra ópera - imaginativa, comovedora e contrastada mas estilisticamente coerente e organizada por motivos recorrentes.

O herói Tell nem sequer é o personagem principal - é a Suíça. A simpatia de Rossini pelo pequeno país em luta pela liberdade é tocante, todo o oposto do chauvinismo; alguma vez Rossini compôs uma ópera de glorificação a Itália? e já agora, alguma vez a ópera foi representada em Áustria?

O acto II é particularmente bem conseguido: progressão dramática, deslumbramento da melodia, beleza do canto.

Nenhum dos papéis é mal tratado do ponto de vista lírico - para todos há boas árias. Não há um contraste excessivo recitativo / ária (aliás como no Fidelio e na Flauta), garantindo-se uma razoável continuidade da acção cantada. O final é uma página prodigiosa da arte de composição, como Wagner reconheceu.

É um bocado pesadona ? É, mas cabe a quem dirige, canta e encena ultrapassar o problema. Soa melhor em francês que em italiano? Verdade, foi composta em França, Rossini escreveu a música de forma a casá-la bem com a sonoridade mais suave do francês. A tradução para italiano é difícil e mais agreste.

De qualque modo, a sensação no final é a de se ter assistido a um fenomenal épico, coadjuvado por fenomenal invenção musical. Pede-se silêncio e um longo descanso antes de sair da sala!

Consegui ver Guillaumes e Guglielmos, um bem fraco, em Pesaro, um bem bom, em Lisboa, um excelente no ROH Covent Garden 1990.

Gravações:

Merritt e Gedda foram inigualáveis no papel de Arnoldo (tenor), o mais difícil, que precisa de agudos e sobreagudos certeiros, ágeis, cristalinos, poderosos. Já deu cabo de muitas vozes - daí o receio de alguns tenores. Diego Florez é o melhor que temos hoje, por enquanto.

Inacreditavelmente, não há uma única versão inteiramente satisfatória de ponto de vista da direcção musical. Gardelli é antiquadamente pesado e desajeitado mas tem o melhor elenco, Gedda e Caballe; Mutti é obviamente mau ao longo de 5h e quase estraga a benesse de contar com Merritt; Chailly é o melhor, mas em italiano, com Pavarotti em alta... mas o resto do cast não ajuda muito. Enfim, tem que se ouvir as três...

Algumas escolhas no Tube:

Asile Hereditaire, Chris Merritt


"Selva opaca, deserta brughiera", Mirella Freni


Sur la rive étrangère Caballe / Gedda


O Finale com Thomas Hampson, Marcello Giordani, Hasmik Papian , Opera Bastille 2003



Por estranho que pareça, o Guilherme Tell nunca deu uma ópera perfeita - dá o desejo sempre adiadao da ópera perfeita. Do que podia ser, se...
Deve ser isso o que mais me fascina.

Donizetti dizia que Rossini fizera o resto do Tell, mas o 2º acto tinha sido feito por Deus!

4 comentários:

Paulo disse...

Os gostos discutem-se, não é, Mário? O Rossini, a mim, aborrece-me um bocado. Gosto só de algumas postinhas. E Os Mestres Cantores também ainda não me entusiasmaram muito. Gosto da abertura e de uma ou outra cena. Fidelio e Flauta Mágica, sim. Estou de acordo.

Mário R. Gonçalves disse...

Paulo,

Infelizmente, os gostos discutem-se POUCO. Fazem falta boas tertúlias ...

Mas a minha acalorada exaltação do Tell não é só questão de gosto. É também de prazer - e esse já não se discute...

Alberto Velez Grilo disse...

Olá Mário

Pegando no comentário do Paulo, a mim é Wagner que me aborrece.

Talvez o compositor que mais me satisfaz seja Donizetti (nas três rainhas Tudor e na Lucrézia). Claro que os librettos são discutíveis e muitos vezes sem lógica alguma. Mas a linha melódica, para meu gosto, sobrepõe-se a tudo.

Mas depois de Donizetti, vem a exaltação das árias de Rossini. Aqui para nós, ás vezes até me apetece bater o pé e dançar (isto é segredo). O Guilherme Tell é a menos Rossiniana de todas as óperas de Rossini. Não concorda? Será por isso que é a mais completa? Já agora, parabéns pela escolha do Merritt na ária para tenor (bem melhor que o Floréz)

Quanto a Beethoven, há quem diga que o Fidélio é a ópera mais completa alguma vez composta. A mim não me convence do ponto de vista musical. Prefiro Beethoven nas sinfonias e nos concertos.

Quanto à Flauta Mágica, tenho um grande carinho por ela. Foi a primeira ópera que algumas vez vi (em Estocolmo). Tenho no entanto um problema, estou sempre à espera das árias da Rainha da Noite.

Portanto, e como gostos se discutem, concordo consigo em Rossini. Apenas:)

Como prazeres não se discutem, oiçamos aquilo de que mais gostamos.

Um abraço

Mário R. Gonçalves disse...

Obrigado, Alberto. É sempre bom tê-lo por cá.

Estou a ve se consigo evitar dizer...mas não consigo...é que...a mim Donizetti...aborrece-me! É piegas,langoroso... Pronto, perdoe, mas temos uma bela divergência: somos todos aborrecidos por óperas diferentes. É a diversidade.

Quanto ao Tell ser a menos rossiniana, não sei bem, acho que Rossini se excedeu a si próprio e conseguiu uma das tais obras universais e intemporais. Se quer dizer que há menos clichés rossinianos no Tell, é verdade. Também Verdi, na sua última (Otello), foi menos Verdiano. Já Wagner é menos wagneriano nos Mestres Cantores, e quanto a mim (barbaridade!)nunca mais esteve ao nível...

Admirado fico consigo por não apreciar o Fidelio do ponto de vista musical; pois se esse é mesmo o ponto forte! Beethoven não terá tido um enorme talento teatral, mas a música, oh deuses, dessa não deixo ninguém dizer mal ;)

Um bom fim de semana

Mário