quinta-feira, 31 de março de 2011

o Trans-siberiano (III)


A DACHA - segredo da alma russa


As famílias urbanas russas não dispensam a sua casinha de campo para escape de fim de semana - a dacha. Geralmente de madeira, com águas furtadas e um quintal à volta, onde cultivam flores e pepinos. Há-as de luxo, com mármores, ou muito pobres, simples casotas. São um estilo de vida, estão por toda a parte e desfilam aos olhos de quem vai à janela do Rossiya.



Quem não se lembra do seu protagonismo em grandes filmes russos? No sublime "Solaris" de Andrei Tarkovsky; no genial "Sob um sol enganador" de Nikita Mikhalkov; no "Dr. Jivago", de David Lean; no perturbante e belíssimo "Desterro" ("The Banishment"), de Andrei Zviaguintsev... a dacha não é só décor, é personagem com vida própria.

A dacha do Dr. Jivago na estepe gelada

É como um santuário de cultura alternativa. Reúne-se a família no sentido lato (tios, primos....) , aceitam-se visitas-surpresa com hospitalidade. Grandes almoçaradas (adoram grelhados de fogareiro) ou alegres e demorados chás (indispensável o samovar antigo, em latão, com patine) acompanhados de salgados e bolinhos fazem parte do programa, entremeados de canções e guitarradas. Indispensável também o mergulho no rio ou no lago, ou o passeio de bicicleta.

Samovar e guitarradas

Quanto ao recheio: serviços de louça, quadros com cavalos e troikas, jarras com flores por toda a casa; livros de Dostoievsky, Tolstoy, Tchekhov, Pushkin.

Nada de plásticos ou poliéster! Paninhos de renda, porcelanas, vidros e metais. Uma cadeira de baloiço em verga. Requinte: porcelanas Lomonosov de S. Petersburgo, mas peças avulso desconjuntadas também servem.
serviço Lomonosov

Em regra, não há confortos à ocidental: vida despojada, rural. Não há telefone nem água quente (a não ser a fervida para chá), muito menos televisão. Rádio, só a pilhas. A casa de banho é uma cabine no jardim...
A maioria vai da cidade à dacha de combóio - até porque muitas foram construídas em terrenos inacessíveis por estrada, mais baratos.

Na origem, eram casas de retiro dos velhos reformados, único refúgio para sobreviverem com as magras pensões. No regime soviético, foram "regulamentadas" : a área do jardim tinha de ser 6 sotok (~ 600 m2), padrão oficial para área arrendada pelo Estado. Agora já abundam luxuosas vivendas, mais escondidas nos bosques ou sobre os lagos.


O que interessa é a sensação de "regresso às origens", ao modo ou ao local de vida dos antepassados, e a fuga ao stress urbano. E todo o requinte é pouco com a decoração das janelas ! Infelizmente, passam demasiado rápido para quem as vê da janela do Rossiya.




A PASSAGEM DOS CONTINENTES

continuando a viagem, com os Urais à vista, chegamos a...

Perm, a última europeia

Ponte ferroviária sobre o rio Kama, Perm

Estação

Catedral

Galeria de Arte Estatal, Perm

Cidade intensamente industrial (fabrica andares do fogetão Proton, o lançador russo) , petrolífera, universitária também, Perm é desinteressante, um caos de edifícios de mau gosto. Não merece saída.

Prossigamos. Uma bebidita no bar ?

Há de tudo: homens de negócio chineses, casais de reformados americanos e franceses, jovens aventureiros de mochila a solo ou em grupo, gente local em viagem de trabalho ou de visita à família. Conversa multilingue.



ATRAVESSAR OS URAIS

Rio Ufa, Urais

Finalmente, saímos da Europa, os Urais são a fronteira com a Ásia. Estendem-se de norte a sul, do Ártico ao Báltico, por 2000 km, mas são montes de baixa altitude, no máximo uns mil e poucos metros, arredondados pela erosão, relevo velho. Do trans-siberiano, que os atravessa a sul, quase podem passar desapercebidos. A paisagem oscila entre floresta, vales, lagos, rios e estepe.

Telle était la frontière que Michel Strogoff devait franchir pour passer de Russie en Sibérie (...)Les neiges éternelles y sont inconnues, et celles qu’un hiver sibérien entasse à leurs cimes se dissolvent entièrement au soleil de l’été. Les plantes et les arbres y poussent à toute hauteur.


Já eram conhecidos dos Gregos, que lhe chamavm Montes Rifeus (Rhipaion) e os situavam no mítico país dos Hiperbóreos, último limite do mundo conhecido.


E ... os almoços ?

Também há que cuidar da fominha ! O melhor é esperar pelas estações onde o trans-siberiano faz paragens mais demoradas, uns 20-30 min. :


No cais, nas plataformas, estão já à nossa espera banquinhas de vendas de comida, reputada melhor do que a comida a bordo. Saimos, esticamos as pernas, respiramos ar fresco e o aroma de comida quente com especiarias, que gentes locais acabaram de cozinhar em casa! As melhores são das "babushkas", as senhoras mais idosas... só falam russo mas são bem dispostas.

Sopas, estufados, peixe fumado do lago Baikal, frango e batatas em várias opções gastronómicas, massas, sandes variadas, ovos, yogurtes, queijo, pão, framboesas, vegetais, bolinhos, tudo com aspecto apetitoso e a preços... incríveis (em rublos).


Mas a bordo tem de ser o jantar: hoje, Bife Stroganoff, pela 3ª vez. Mas sempre diferente (parece que há mil maneiras de fazer... não com favas*, suponho).


E grande música para um belo serão, ok ?


Próxima etapa:

SIBÉRIA PROFUNDA
já estamos na Ásia!

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* favas, só sob condição ! :D

quarta-feira, 30 de março de 2011

Trans-siberiano (II)


PRIMEIRA ETAPA

1 - Nizhny-Novgorod

Le train dans lequel Michel Strogoff prit place devait le déposer à Nijni-Novgorod.

A pouca distância de Moscovo, nas margens do Volga, Nizhny-Novgorod (antiga Gorki) foi local de ferozes batalhas entre russos e mongóis, várias vezes queimada e reconstruída; rivalizou em poder e influência com Moscovo no séc. XIV. Tornou-se capital comercial e feira de renome mundial no séc XIX.


Nijni-Novgorod, qui en temps ordinaire ne compte que trente à trente-cinq mille habitants, en renfermait alors plus de trois cent mille, c’est-à-dire que sa population était décuplée. Cet accroissement était dû à la célèbre foire qui se tient dans ses murs pendant une période de trois semaines. (...)
La ville, assez morne d’habitude, présentait donc une animation extraordinaire. Dix races différentes de négociants, européens ou asiatiques, y fraternisaient sous l’influence des transactions commerciales.

Infelizmente, o estilo neoclássico/imperial estalinista povoou a cidade de edifícios administrativos pesados e de feios monumentos ao regime.

Mais vale ficarmos pelas cúpulas douradas da Igreja da Natividade de São João Batista(1680) :



e pelo belo Teatro dramático (1798):


2 - Kazan

Aqui sim, vale a pena fazer a primeira escala e visitar a cidade, até porque é a verdadeira porta de entrada na Sibéria.

A estação é a primeira de uma longa série, monumental:


Kazan, também nas margens do Volga, ainda é europeia, mas já é bicultural e bilingue; foi cidade tártara (muçulmana) até Ivan o Terrível a ter conquistado e cristianizado. Por isso, além de placas bilingues, também as mesquitas emparelham com igrejas ortodoxas.

On voyait là des Tartares vêtus d’un cafetan à manches courtes et coiffés de bonnets pointus dont les larges bords rappellent celui du Pierrot traditionnel. D’autres, enveloppés d’une longue houppelande, la tête couverte d’une petite calotte, ressemblaient à des Juifs polonais. Des femmes, la poitrine plastronnée de clinquant, la tête couronnée d’un diadème relevé en forme de croissant, formaient divers groupes dans lesquels on discutait.

O ponto alto é o famoso Kremlin (cidadela) de Kazan, só ultrapassado pelo de Moscovo, e classificado como Património Mundial.



A Torre Spasskaya, porta de entrada do Kremlin.


A Catedral da Anunciação (ortodoxa) é o mais antigo edifício em pedra de Kazan. Do mesmo arquitecto que construiu a Catedral de S. Basílio da Praça Vermelha de Moscovo, Postnik Yaklev, foi começada em 1552, após a conquista da cidade por Ivan o Terível. Tem 5 ábsides e 6 naves.





Uma mesquita muito a Norte:



De resto, Kazan, capital da Tartária, é uma cidade que vale a pena visitar, desde as margens do Volga às ruas centrais onde ainda se encontram antigas casas de madeira, e muitas, muitas igrejas:

Rua pedonal

Casa de madeira

Marginal e ponte sobre o Volga

Noite branca em Kazan, cúpulas ao longe.

Si Kazan est justement appelée «la porte de l’Asie», si cette ville est considérée comme le centre de tout le transit du commerce sibérien et boukharien, c’est que deux routes viennent s’y amorcer, qui donnent passage à travers les monts Ourals.

E por hoje ficamos aqui. História, Arte, Literatura, e ainda há os museus...

Museu Nacional da Tartária



Que tal, está a agradar? Próxima etapa:

- As dachas, vistas da janela
- Perm, Omsk, os montes Urais e o Altai

Boa noite!





(citações do Michel Strogoff de Jules Verne)

(continua)

segunda-feira, 28 de março de 2011

Nóstos álgos : o Trans-siberiano (I)


Nostalgia, sensação de saudades de um passado vivido ou idealizado e irreal.

Viagem mítica, utopia, devaneio de aventura e descoberta, a linha do trans-siberiano faz parte das fantasias adiadas que me deixam imensa nostalgia.

Atravessar os Urais e a estepe mongol, a cordilheira do Altai e o deserto de Gobi, o Volga e os glaciares, a taiga e o lago Baikal, percorrer partindo da Europa tudo o que nos separa da Ásia e das bordas do Pacífico, já com vista para o Alasca; do nascer ao pôr do sol, passar rotas milenares de trânsito nómada, cidades de mil fulgurantes cúpulas, arquitecturas rendilhadas, e jantar em clima aristocrático e quase íntimo enquanto à janela desfilam dachasgers mongóis, manadas de cavalos e reabanhos das tribos das estepes, estação após estação da sofrida linha que foi estrela vermelha à custa do imenso sacrifício de tantos inocentes vítimas do regime estalinista.

Reviver leituras - Tólstoi, os contos de Tchekov, o Miguel Strogoff de Júlio Verne, Pasternak, as Cidades Invisíveis de Calvino, aproximar as viagens de Marco Pólo, a rota da seda.


Avistar ou visitar Nizhny Novgorod, Kazan, Novosibirsk, a Irkutsk do Miguel Strogoff, o Baikal, a elegante e refinada Khabarovsk...

Nem que fosse aos 100 anos, era a viagem da minha vida!
Mas primeiro, os bilhetes:
1ª classe, pouco mais de 800 €.


Linha Trans-siberiana - linha do Amur

A rota tradicional é a linha Trans-siberiana, que se inicia em Moscovo, passa por Nizhny Novgorod e Kazan no Volga, Perm no rio Kama, montes Urais, Omsk no rio Irtysh, Novosibirsk no rio Ob, Irkutsk perto da extremidade sul do lago Baikal, Khabarovsk no rio Amur, fronteira com a China,e finalmente Vladivostok, já no Pacífico.


Uma viagem de cerca de 10.000 km e 8 fusos horários, durante três semanas, a mais longa das viagens em caminho de ferro. É preciso planear cuidadosamente as paragens, escalas e estadas pelo caminho.

Partida: estação Yaroslavl, de Moscovo

O quilómetro zero !



Embarque

O Rossiya (Rússia), comboio nº 2, dia sim dia não:


Cá vamos.
Embalados pela marcha do comboio, quantas fantasias, quantos sonhos, quantos abraços e despedidas, quanta História, quanta Arte, quantos risos e choros... revisões à janela, ao passar da estepe, memórias na noite, no aperto da cabine, tum-dum tum-dum, já temos 100 anos?

À saúde !


(continua)