segunda-feira, 25 de março de 2013

Ler e Reler: Os Infinitos de John Banville

Há muito que aqui não falava de livros, mais por falta de entusiasmo com leituras recentes. Mas a releitura em tradução portuguesa dos Infinitos de John Banville trouxe-me de volta esse entusiasmo: é a obra maior das que li nos últimos anos, melhor que O Sentido do Fim de Julian Barnes, a única que se lhe compara: inventiva, inteligente, culta, surpreendente, inesquecível.

Banville traz os deuses antigos, greco-romanos, de volta à companhia dos homens, interferindo na sua vida, comentando a humanidade, eles próprios humanos de vícios e paixões e saudosos de mortalidade. Hermes, em particular, está a acompanhar de perto a vida numa casa de campo inglesa onde um grande cientista, físico de partículas e do espaço-tempo, está em coma depois de um ataque cardíaco. As personagens que borboleteiam à volta do doente, familiares e visitas, parecem fantoches de teatro nas mãos de Hermes e de Zeus, o Pai deles deuses, velho lúbrico e sem escrúpulos.

As pequenas "liberdades" dos humanos, que julgam escapar aos deuses, são a virtude maior nesta história, e aquilo em que as pessoas se tornam afinal iguais às divindades: apanhar o destino de surpresa, fintá-lo. Mas é pura ilusão, afinal...

A narrativa tem vários primeiras pessoas: ora é Hermes que descreve os humanos, e sobretudo os seus pensamentos,  ou age entre eles, ora é o quase-morto Adam que revisita o passado ou descreve com mordacidade o que se passa com as pessoas à sua volta. A capacidade de Banville para descrições de cenários e de cenas mais ou mesnos patuscas, mas sempre com uma nuance melancólica, é uma descoberta permanente.

E o tempo, a noção de tempo, as várias sensações de tempo, as ilusões e os paradoxos, são tema recorrente.

Excelente tradução (de Tânia Ganho), e edição (2011) em bom português com as letras todas :) detecta, perspectiva, directa...

Excertos:

- o tempo -

Time, her father was saying, looking upwards and scratching his chin through his beard, time has tiny flaws in it, tiny slippages, that in the very beginning hindered the flow of formlessness and created form. In the same way, he said, that your nails catch on something made of silk, with little hooks you did not know were there until they snagged.... Flaws in the matrix, temporal discrepancies. So at the start, when there was still nothing, the world was, you could say, hindered into existence.

O tempo, estava o pai a dizer, olhando para cima e coçando o queixo atraves da barba, o tempo tem minúsculas falhas, minúsculas derrapagens que no principio travaram o fluxo de informidade e criaram forma. Da mesma maneira, disse ele, que as tuas unhas ficam presas num tecido de seda, com ganchinhos que tu náo sabias que existiam até eles prenderem os fios. "Entendes?", perguntou. Falhas na matriz, discrepâncias temporais. Por isso, no começo, quando ainda não havia nada, o mundo foi por assim dizer forçado a existir.

- os deuses -

When on a summer’s day a sudden gale tears through the treetops, or when out of the blue a soft rain falls like the fall of grace upon a painted saint, there one of us is passing by; when the earth buckles and opens its maw to eat cities whole, when the sear rises up and swallows an entire archipelago with its palms and straw huts and a myriad ululating natives, be assured that one of our number is seriously annoyed.

Quando num dia de verão uma súbita rajada rasga as copas das árvores, ou quando inesperadamente cai do céu uma chuva suave como cai a graça sobre a imagem de um santo, é porque um de nós vai a passar; quando a terra cede e abre as suas mandíbulas para tragar cidades inteiras, quando o mar se ergue e engole todo um arquipélago com palmeiras, cabanas de palha e uma miríade de nativos ululantes, podem ter a certeza de que um de nós esta profundamenre irritado.

- o cão -

Rex the dog is a keen observer of the ways of the human beings. He has been attached to this family all his life, or for as long as he has known himself to be alive, the past for him being a doubtful, shapeless place, peopled with shadows and rustling with uncertain intimations, indistinct spectres.

Rex, o cão, é um observador atento do comportamento dos seres humanos. Está ligado a esta família desde que nasceu ou pelo menos desde que tem a noção de que está vivo, sendo o passado para ele um lugar duvidoso e sem forma, povoado de sombras e restolhando intimações incertas e espectros indistintos.

- eu e o outro -

Adam is cold, and the soles of his bare feet are sticking unpleasantly to the chill, tacky floorboards. He is not yet fully awake but in a state between sleep and waking in which everything appears unreally real. When he turns from the window he sees the early light falling in unaccustomed corners, at odd angles, and a bookshelf edge is sharp as the blade of a guillotine. From the depths of the room the convex glass cover of the clock on the mantelpiece, reflecting the window's light, regards him with a monocular, blank glare. He thinks again of the child on the train and is struck as so often by the mystery of otherness. How can he be a self and others others since the others too are selves, to themselves? He knows, of course, that it is no mystery but a matter merely of perspective. The eye, he tells himself, the eye makes the horizon. It is a thing he has often heard his father say, cribbed from someone else, he supposes. The child on the train was a sort of horizon to him and he a sort of horizon to the child only because each considered himself to be at the centre of something — to be, indeed, that centre itself — and that is the simple solution to the so-called mystery. And yet.

Adam tem frio e as plantas dos pés descalços colam-se-lhe desagradavelmente às traves geladas e pegajosas do soalho. Ainda está meio a dormir, encontra-se algures entre o sono e a vigília, num estado em que tudo parece irrealmente real. Quando vira costas à janela, vê a primeira luz do dia recair em inabituais recantos, em estranhos ângulos, e a borda de uma estante torna-se afiada como a lâmina de uma guilhotina. Das profundezas do quarto, a tampa de vidro convexo do relógio pousado em cima da lareira, reflectindo a luz da janela, fita-o com um olhar monocular e vazio. Adam pensa novamente na criança do comboio e, como lhe acontece com tanta frequência, fica desconcertado com o mistério da alteridade.  Como é que ele pode ser uma entidade e os outros, outros, sendo os outros também eles entidades de si próprios ? Claro está que sabe que não há mistério algum, trata-se simplesmente de uma questão de perspectiva. O olho, diz ele para si mesmo, é o olho que cria o horizonte. Esta é uma frase que ouviu o pai dizer muitas vezes, supõe que plagiando alguém. A criança do comboio constituiu uma espécie de horizonte para Adam, e ele uma espécie de horizonte para a criança, apenas porque cada um deles achou que estava no centro de qualquer coisa - achou, aliás, que era o próprio centro - e é simplesmente essa a solução do dito mistério. E no entanto...

1 comentário:

Virginia disse...


Estive e recordar o Brideshead revisited pelo Youtube. Será que não poderiam repôr estas séries na RTP Memória- ou lá o que é? Vi óptimas séries quando era jovem e agota salvo raras excepções é tudo péssimo.
Ler inglês ainda é das coisas que me dá prazer. Mas tenho lido bastante em português nos últimos tempos. Gostei imenso de Arte da Viagem de Paul Theroux, um livro que se vai lendo e que nos vai empolgando cada vez mais, não pelo suspense, mas pelo modo como está escrito.
Obrigada pelo conselho e pelos pedacinhos de prosa com que nos brindou. Sabe sempre bem ler algo mais do que o Público!!!

Abº