O desconchavo que eu podia temer tendo em conta o Indian Queen de Peter Sellars em Madrid não aconteceu. Pelo contrário. O Dido e Eneias na Gulbenkian foi superlativo.
Concertos assim são raros. Para começar, uma entrega total, uma intensa festa de música, desde as alegres danças (os violinos soavam a pub inglês ! ) até aos coros de perfeição quase irreal, e o pungente Lamento de Dido tocado e cantado como nunca ouvi - valorizando as pausas, o silêncio e os pianissimi, comovente até dizer basta.
Depois, o estilo interpretativo barroco levado às últimas - a música descrevendo sucessivos "arcos" em cascata de escalas, precisos e enfáticos, em fidelidade à época. Os contrastes dinâmicos surpreendiam e ajudavam a construir uma narrativa dramática que dispensou por completo a encenação (embora com algum efeito de luz, sóbrio e ajustado); o coro que termina a ópera depois do Lamento foi disso um exemplo definitivo - ora suavíssimo, quase inaudível, ora ribombando com as forças possíveis. A disposição no palco, em arco, de pé atrás da orquestra, ajudou ao efeito espacial. Acabada a ópera, as luzes quedaram apagadas num minuto de silêncio antes do aplauso. Bonito.
A empatia de Currentzis com os músicos é total, "vê-se" que aquela orquestra foi criada por/para ele. As indicações gestuais (e ele até salta e bate o ritmo no estrado) são precisas, detalhadas e muito expressivas - as mãos de Currentzis não param, são por si só um bailado. No final, escorria água por todos os poros.
Soube depois que este concerto encerrava a tournée europeia - e notou-se bem nos rostos o júbilo de todos com as prolongadas ovações que "obrigaram" a dois encores, um em homenagem a Handel - aniversário na véspera - e outro a Sellars, um trecho da Indian Queen de Madrid, felizmente não encenado :) .
Não há hipótese de traduzir em gravação esta vivacidade e esta contenção, em aparente paradoxo, nem o momento único que se vive num concerto com tal entrega. Ainda não ouvi o CD com Dido e Eneias pela MusicaAeterna, mas certamente que soará a excesso aquilo que em palco foi autêntico e coerente. O que fica principalmente deste concerto é
- a marca de autor de Teodor Currentzis: este é o Purcell que ele soube recriar com invulgar garra.
- a música de Purcell, desfrutada com alegria e comoção partilhadas num momento único entre músicos e ouvintes.
MusicaEterna, de Perm, nos confins da Europa.
[estiveram bem as vozes solistas, a destacar uma seria a de Daria Telyatnikova ].