Tenho visto pouca coisa* que mereça nome de obra-prima no cinema dos últimos anos. Este é o filme que mais se aproxima disso.
Claro que se vai embora sem sucesso nenhum , como foi o Blade Runner em primeira exibição, ou as primeiras obras de Carpenter. Está condenado a ser filme de culto, e daqui a uns anitos volta por cima.
Fica-se logo em alerta com o argumento: é baseado num livro de Stanislav Lem, O Congresso Futurológico, de 1971 (em plena época hippie e LSD), à volta de um congresso no futuro para decidir sobre o uso de drogas químicas que tragam a felicidade e a fuga de uma realidade horrenda, de uma vida miserável. Bom, o realizador podia ter dado cabo do livro, feito uma pieguice 3D qualquer, mas um livro de Lem é demasiado difícil** para cabeças ôcas o abordarem de ânimo leve.
É um filme europeu, franco-belga-polaco-germânico. De moldes semelhantes já sairam pastelões, desta vez contudo aleluia! que temos cinema. Não hollyoodesco, deo gratias.
A primeira parte é bem mais cinema que a segunda: mais poética, mais criativa, não há um segundo de aborrecimento, cresce uma tensão bem orquestrada e numa linguagem de imagens e montagem que é um primor. Fantástico o processo de digitalização da humana Robin Wright, belíssimo momento de Harvey Keitel, tal Mefistófeles convencendo Fausto a vender a alma.
Passando da realidade real para a realidade virtual, há um dualidade discutível: não temos animação tipo Disney, nem Pixar, nem japonesa, mas algo próximo do psicadélico anos 60-70, do Yellow Submarine, o que é por um lado uma diferença salutar, por outro uma opção meio falhada. Se as paisagens e objectos de décor estão muito bem, e as fantasias loucas por vezes fenomenais, os humanos digitais deixam muito a desejar, e logo quando é suposto estarmos numa tecnologia avançadíssima que garante o bem-estar e a imortalidade aos digitalizados. Mais valia serem algo esfumados, indefinidos, do que aqueles bonecos feios.
O excessivo alongamento deste período do filme piora as coisas: teria mais impacto e sedução se fosse mais conciso. Aqui deve ter-se pretendido seguir com alguma fidelidade o relato de Stanislav Lem, mas a transposição para cinema tem de saber lidar melhor com isso.
O que vale é que, por um lado, há sequências fabulosas, remetendo muitas vezes para uma revisão do passado "real" agora transposto para o reino do onírico. Por outro lado, a questão de fundo do filme (e do livro) - vale mais ser infeliz, doente e mortal com liberdade de escolha, ou feliz e saudável para sempre sem ela ? - vai sendo desenvolvida com perícia quanto baste. Num breve retorno à real Nova Iorque futurista, o olhar vazio das pessoas, quase marionetas de farrapos na carruagem vandalizada do metro, faz um contraste brutal: que liberdade de escolha é esta?
O papagaio de papel e os aviões, a idade e o envelhecimento, as drogas e a alucinação, são temas que atravessam todo o filme. E para uma actriz a quem já nada mais resta senão assumir-se mãe, a decisão final é ditada pela saúde que deseja para o filho, que finalmente encontra algo parecido com felicidade, e a escolha de ambos, sendo livre, é óbvia. We chose. Não há que ter medo do futuro, se existir escolha.
Ah, e Robin Wright merecia um prémio dos grandes.
http://thecongress-movie.com/watch-the-trailer.htm?lng=en
Realizado por Ari Folman
Argumento: Stanislaw Lem (obra de ficção), Ari Folman (adaptação)
Actores: Robin Wright, Harvey Keitel...
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* Agora que me lembrei: este é o melhor filme que vejo desde Tree of Life, de Terence Malik.
** É também ele o autor de Solaris, que deu origem à obra-prima de Tarkovsky.
* Agora que me lembrei: este é o melhor filme que vejo desde Tree of Life, de Terence Malik.
** É também ele o autor de Solaris, que deu origem à obra-prima de Tarkovsky.
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