[mais uma reportagem virtual de sítios improváveis]
Tingwall fica nas ilhas Orkney, muito lá para cima, 'depois' da Escócia - talvez lá por onde andou o grego Pytheas à procura da Ultima Thule, mas onde nunca chegaram os romanos. Uma terra de planuras no meio do mar, cobertas de verdura rasteira - as árvores já rareiam - onde são precisas muitas horas de ferry e estrada para chegar a algum foco cultural, mesmo assim periférico.
Tingwall, na Mainland Orkney
Vive-se da pesca e da lã das ovelhas (lindíssimas camisolas). As noites são longas, o Inverno nunca mais acaba. Quando vem o sol, inunda tudo com uma luz de milagre, esplendorosa, azuis e verdes resplandecem por uns instantes, e acaba.
As Orkneys são ilhas de sonho, com pequenas cidades misteriosas como fantasmas de pedra na bruma - Kirkwall, Stromness - e espantosos alinhamentos megalíticos - Brodgar. Quem lá vive sabe o que é solidão. Talvez por isso, muitos foram os que de lá partiram a explorar a América, sobretudo embarcados nos navios da Hudson Bay Co., a companhia de peles, que ali teve um activo entreposto desde 1702 até ao início do século XX.
Stromness, porto de partida para o ártico canadiano.
Bom, já vai longa a introdução. É num sítio assim que aconteceu a Betty's Reading Room.
Num nenhures afastado de tudo, com menos de meia dúzia de casas espalhadas, onde quase só resta um molhe de acostagem para o ferry, alguém que gosta muito de livros escolheu oferecer uma casita - uma cabana - como sala de leitura. Em homenagem a um ser querido, surgiu esta Reading Room que só por si me dá vontade de abalar de malas feitas para as lonjuras orkneyanas.
"The truth has never been of any real value to any human being — it is a symbol for mathematicians and philosophers to pursue. In human relations kindness and lies are worth a thousand truths."
Graham Greene, Heart of the Matter
A Betty’s Reading Room foi parte de uma pequena quinta junto ao cais. Lá morava Betty Prictor, uma professora com amor pelos livros e pela leitura.
Os amigos resolveram manter a memória de Betty, abrindo a público em 2012 esta sala confortável, aquecida no Inverno, onde qualquer um se pode sentar à espera (por vezes longa) do ferry.
E pode levar os livros para acabar de ler.
‘Please return – eventually.’
Só na Europa - na minha Europa.
''Tingwall” é um nome de origem viking, Thingvöllr, que significa "campo da assembleia". Uma das sagas nórdicas, a Orkneyinga, refere-se a uma reunião do chamado Parlamento Viking neste local em 1174.
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Esta Reading Room refresca-me a admiração pela raça e acende uma luzita de boa esperança.
10 comentários:
Concordo, Mário. Esta também é "a minha Europa", e são estas coisas que resgatam a humanidade.
Sabe qual é o primeiro-ministro português que eu mais desprezo? Guterres: porque afirmou uma "paixão pela educação" e falhou a oportunidade.
Que post tão oxigenado, tão fresco, tão limpo, tão bom. Quero ir rebolar ali e ficar.
Gi,
o meu desprezo, infelizmente, vai mais para a caldeira de onde Guterres saiu.
Em Portugal uma coisa destas - a Reading Room - não era possível porque essas coisas são 'obrigação do Estado'. No mínimo, só com subsídio estatal, apoios comunitários e de preferência sob a forma de fundação.
E se alguém tivesse a originalidade nórdica de abrir uma coisa destas, os livros desapareciam, era assaltada à procura de uns tostões ou de um maço de cigarros, e vandalizada por aquele gosto só português de estragar o que está bonito, só por estragar. Teria de haver grades, cão de guarda e porta blindada. O horário de abertura excluia fins de semana e feriados.
E assim por diante.
É a gente, Gi, somos nós, incapazes de criar riqueza, sempre à espera do maná, sempre de mão estendida à riqueza dos outros. E deste caldo saem Guterres, Socrates, Barrosos e Cavacos.
Era bem mais fácil se a culpa fosse toda do 'é só fazer as contas'.
humming,
nem imagina como fico contente por ter gostado. Apetece mesmo, vamos contratar um veleiro e subir os mares ?
Era tão bom!
Obrigado, Mário, por este texto tão bom e tão convidativo. Se houver um lugar a mais no veleiro...
Haverá sempre lugar neste veleiro para gente de bem, F1, com muito gosto.
Este post trouxe-me à memória a casa do Kettle's Yard de Cambridge. "Open House" ou "Open Library" a ideia é a mesma - partilhar com a comunidade os bens culturais... Concordo, Mário, em Portugal isto era impossível. O vandalismo e pilhagem rapidamente acabariam com tudo.
Visitei essa casa em Cambridge, passei lá uma tarde, é um lugar mágico. Foi há dez anos, mas ainda conservo uma imagem muito viva do interior, de tal modo me marcou. Obrigado por ma recordar, Anónimo.
Mário, tem toda a razão no que diz. Só que eu acho que naquela altura era possível imprimir um rumo que levaria a termos já hoje a primeira geração bem-educada do pós-74. E não estou só a falar de instrução, embora certamente também de instrução.
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